terça-feira, 25 de março de 2008

"Não sei se volto desta"


(...) Era de manhã, bastante cedo, pelas 05,00 horas da madrugada que os soldados eram acordados de um sono que fora bastante irrequieto. O Aquartelamento tinha sido atacado nessa noite, a havia que fazer o reconhecimento na área circundante, para depois se partir em direcção à picada ao encontro da coluna de reabastecimento que já partira de Pundanhar com destino a Nangade. No meio da azáfama dos preparativos para a operação, os olhos dos soldados cruzavam-se numa cumplicidade que era partilhada por todos, e que se misturava numa intensa preocupação que se diluía no colectivo da incerteza.

- Vá lá malta, temos que sair cedo antes que os turras cheguem lá primeiro que nós - dizia o Alferes que ia comandar o Grupo de Combate a quem fora incumbida a missão, que foi logo interrompido por um soldado que estava mais próximo:

- Oh meu Alferes, deixe-se de tretas, se calhar eles ao saberem que está prestes a passar uma coluna na picada nem dormiram esta noite, e já lá estão à nossa espera.
Era assim, neste ambiente de incerteza que se vivia diariamente cada vez que se saía para uma operação, com os soldados a deixarem arrumadas todas as suas pertenças nas tendas, como se o pressentimento de um regresso incerto pairasse por cima das suas consciências como a humidade do cacimbo que sobrevoava sobre o capim.
- Epá, estás a deixar isso tão arrumadinho, até parece que é desta que já não voltas ao quartel!
- Sei lá! - disse o "Pragal" (1) - continuando com o seu desassossego:
- A FRELIMO tem feito tantas emboscadas ultimamente, que um gajo já nem sabe se é desta que nos calhada a nós "lerpar que nem um tordo".
Antes de o Pelotão iniciar a marcha e mergulhar naquela mata densa, o "Pragal" ainda voltou à tenda e entregou ao soldado que estava mais próximo um pequeno impresso amarelado, dizendo-lhe muito baixinho:
- Olha! - mais logo, se o helicóptero vier, mete-me este "bate estradas" (2) no saco do correio, pois "eu não sei se volto desta".
Era nesta constante incerteza que se vivia na frente de batalha, com os soldados a questionarem diariamente a sua sobrevivência, que estava sempre dependente de factores externos à sua própria vontade e em resultado da lógica da guerra.
No dia seguinte, de regresso ao quartel, todas as angústias eram afogadas nas "Laurentinas" (3) que se emborcavam para saciar a sede, enquanto outro Grupo de Combate acabava de sair para nova patrulha, como se fossem "anjos protectores" de quem agora fazia por descansar um pouco, ainda envolto pelo pó que tornava irreconhecível o rosto tisnado pelo calor e pela terra da cor do barro que se soltava da picada (...)
Carlos Vardasca
25 de Março de 2008
Foto: Soldados da C.CAÇ. 3309 numa patrulha na picada entre Tartibo e Pundanhar. Moçambique, 1971
(1) Alcunha do 1º Cabo Atirador Manuel das Dores Ricardo da C.CAÇ. 3309 (falecido na Vila do Pragal em 2005)
(2) Aerograma
(3) Marca de cerveja de Moçambique

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