segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Planalto dos Macondes, 25 de Fevereiro de 1971


(...) Dispersos, e depois de uma noite mal dormida, tendo como colchão a terra batida do Aquartelamento de Pundanhar onde estava estacionada a Companhia de Caçadores 2703. Resguardados pelos telhados de colmo que pendiam das palhotas do aldeamento que se misturavam com as instalações militares, foi bastante cedo que aos militares da Companhia de Caçadores 3309 foi dada ordem de partida rumo ao Aquartelamento de Nangade.
Faltavam percorrer mais cinquenta quilómetros de picada, depois de termos deixado outros tantos para traz desde Palma até àquele Aquartelamento, percurso percorrido (por estranho que possa parecer) sem qualquer problema, dada a intensa actividade da FRELIMO naquela zona. Pelo caminho e ao longo da picada, fomos encontrando outros soldados que faziam protecção ao itinerário por onde seguia a coluna que transportava a C.CAÇ. 3309.
De aspecto bastante cansado, extremamente exaustos e com a farda meio rasgada cujos farrapos se colavam ao corpo devido à chuva intensa que se abatia sobre a mata, o que evidenciava no seu rosto muitos quilómetros de picada percorridos, lá os deixámos para traz meio escondidos por entre o capim, com as Berliets a acelerarem mais um pouco depois de nos terem certificado de que toda a picada foi patrulhada, transmitindo-nos confiança de que a coluna podia avançar sem problemas em direcção a Nangade.
Nas páginas do meu Diário marcava o dia 25 de Fevereiro de 1971, e a C.CAÇ. 3309 chegava a Nangade, tendo recebido à sua chegada uma recepção muito ruidosa por parte da Companhia de Comando e Serviços do Batalhão de Artilharia 2918 (comandada pelo Tenente Coronel Vasconçelos Porto) e alguns pelotões da Companhia de Artilharia 2745 (comandada pelo Capitão de Artilharia Jorge Duque) ali estacionados, sendo esta última a que iria ser rendida pela C.CAÇ. 3309.
Para impressionar (ou amedrontar) os "Checas" que se encontravam agora formados em frente ao edifício de Comando, as anti-aéreas, os Obus 14 e os morteiros 81mm que faziam parte do sistema defensivo daquele aquartelamento, "vomitavam" todos ao mesmo tempo "bolas de fogo" simulando que o Aquartelamento de Nangade estava a ser atacado pela FRELIMO, enquanto alguns soldados, exibindo as divisas de Capitão ou de Major, incomodavam as tropas acabadas de chegar:
- Olhe lá nosso soldado! - então isso são modos de se apresentar numa formatura com a barba grande, as botas todas enlameadas e o fardamento todo molhado?
Ao que o soldado Condutor Pereira (1) (de alcunha o "Garina") depois de hesitar um pouco lá respondeu, meio irritado e com o seu jeito tão característico, evidenciando o seu sotaque de Lisboa de onde era natural:
- Meu major, acabámos mesmo agora de chegar do mato, sempre debaixo de chuva, e diga-me lá onde é que queria que eu ligasse a máquina de barbear? - ao tronco de uma árvore era?
Ao que o falso Major respondeu de imediato (deixando escapar um ligeiro sorriso) exibindo um frágil autoritarismo e muito pouco convincente:
- Ligavas a máquina aos teus cornos, meu "Checa" de merda!
Percebendo que o soldado ficara perturbado com aquela resposta, o militar que se passava por Major retirou as divisas e abraçou-o, dizendo-lhe:
- Epá! - Desculpa lá, eu sei que fui um bocado bruto mas isto é tudo a brincar - continuando a desculpar-se:
- Eu sou soldado com tu, e isto é apenas uma brincadeira que faz parte da recepção aos "Checas".
- Se não levarmos esta puta de guerra a brincar acabamos por sair daqui todos loucos (...)

Carlos Vardasca
25 de Fevereiro de 2008

Foto 1: Elementos da C.CAÇ. 3309 na coluna militar que os levou até Nangade.
Em primeiro plano podem ver-se (entre outros) o Furriel Barbudo, o 1º Cabo Pinto e o Soldado Rodrigues (Barbeiro).
Foto 2: Vista aérea do Aquartelamento de Nangade no norte de Moçambique (ao centro), ladeado pelos aldeamentos da etnias Maconde e Macua.

(1) Alfredo Bernardino Pereira, Soldado Condutor Auto Rodas NM 15407070, falecido após o regresso da C.CAÇ. 3309 de Moçambique.









sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

" ...não podia ficar indiferente"



(...) Como já vem sendo hábito, e porque o poder dos mais fortes sempre se tem sobreposto ao dos mais fracos, assistimos (a exemplo do que aconteceu com a Conferência de Berlim em 1884-1885 que esquartejou o continente Africano ao sabor do apetite das potências coloniais) ao retalhar do continente europeu por imposição dos EUA, que assim desta forma debilitam o "velho continente" forjando conflitos (mas sempre longe das suas fronteiras), criando-lhe dificuldades para que o Euro não passe a ser a moeda de referência, destronando o Dólar nas trocas comerciais entre países. A declaração unilateral de independência por parte da província do Kosovo instigada pelos EUA (território que legitimamente é parte integrante da República Sérvia, conforme reconhecimento das Nações Unidas) faz parte da estratégia dos EUA de estender a sua influência aos países da ex-Europa de Leste e aproximar-se das fronteiras da Rússia.
Para que não hajam dúvidas, a tão proclamada aspiração de independência do Kosovo nada tem a ver com o legítimo direito dos povos das ex-colónias portuguesas ou do povo de Timor-Leste a libertarem-se do jugo colonial e da ocupação Indonésia. São questões tão diferentes que merecem um breve esclarecimento. Na província do Kosovo não se assistiu a nenhuma ocupação como se verificou nas antigas colónias e num outro contexto em Timor-Leste. O que aconteceu foi que, para fugirem à miséria e procurarem um modo de vida mais desafogado, muitos albaneses efectuaram ao longo de vários anos, vários surtos migratórios da Albânia para o sul da então Jugoslávia (juntando-se a muitos muçulmanos que já ali habitavam) tornando-se desta forma a população maioritária naquela província do Kosovo, também devido aos fortes índices de natalidade daquele povo muçulmano que contrastava com a baixa natalidade do povo Sérvio.
Apesar desta realidade, pergunta-se então:
- Que legitimidade tem uma minoria étnica em reivindicar a soberania de um território que não lhe pertence mas que a acolheu, só porque os seus protagonistas que gozam de algum prestígio nacionalista (para além de se refugiarem na hegemonia populacional) se sentem protegidos pelos "senhores da guerra" e pelos poderosos cartéis da corrupção e do tráfico de armas?
Vamos supor que aqui entre nós se desencadeia um surto migratório de populações espanholas para uma qualquer província do nosso país, e aí, ao longo dos tempos, passam a constituir a maioria da população desse território e se sentem no direito de reivindicar a sua autonomia.
Como é que nós portugueses então reagiríamos, se assistisse-mos ao esquartejar da nossa pátria por interesses que nos eram alheios?
Perante mais esta violação da soberania de um estado, ficou cada vez mais claro para quem ainda tinha dúvidas (com a declaração unilateral da independência do Kosovo) que o direito internacional só é respeitado conforme as conveniências das potências hegemónicas, mesmo que para isso criem um estado artificial (cuja inviabilidade o fará viver permanentemente sob a ocupação estrangeira) onde a legitimidade da sua existência sirva apenas para alimentar a instabilidade no continente europeu, e ali dar guarida a interesses que nada têm a ver com a convivência étnica que era uma das características daquela região dos Balcãs, antes de se instalar a instabilidade (que se provou ser importada mas que tanto Sérvios, Bósnios e Muçulmanos não podem deixar de ser também responsáveis) e que deu origem aos conflitos já conhecidos e ao desmembramento da ex-Jugoslávia por ordem do Pentágono.
Como eu não poderia ficar indiferente, aqui fica o meu contributo para a compreensão desta questão, que aliás, ainda vai fazer correr muita tinta na imprensa mundial de referência, que decerto irá denunciar e não deixará impune mais esta fraude com mais uma violação do direito internacional, a exemplo de outras tantas, como foi o caso da monstruosa mentira da existência de armas de destruição maciça no Iraque, e que provocou milhares de vítimas inocentes só para saciar os apetites hegemónicos do "Império" (...)

Carlos Vardasca
22 de Fevereiro de 2008
Mapas recolhidos do "Google" e do "Mundo Diplomático".

"... Cada vez mais próximo do inferno"


(...) Ainda as galinhas do mato se espreguiçavam no cimo das acácias e apenas alguns cães vadios, meio esqueléticos, vagueavam por entre as gruas do cais de Porto Amélia, e já as tropas eram convidadas a interromper o seu sono meio desconjuntado, e embarcarem naquele vaso de guerra que os aguardava na penumbra do cacimbo que se abatia sobre o seu convés.
Alguns trabalhadores portuários, que se faziam acompanhar por crianças seminuas que já era seu hábito deambular pelo cais, vasculhavam agora o amontoado de caixas da ração de combate vazias, na ânsia de encontrarem algo que lhes desse algum aconchego naqueles ventres disformes, indiferentes à movimentação militar que em silêncio subia o portaló e se acomodava nos diversos recantos do navio.
Eram cerca das 04,00 horas do dia 22 de Fevereiro de 1971, quando a Corveta NRP "João Coutinho" zarpou daquele cais rumo ao norte de Moçambique, transportando a bordo a Companhia de Caçadores 3309 com destino à povoação de Palma. Apesar do mar não estar muito intranquilo, por vezes, e como as ondas ao baterem contra o seu casco faziam salpicar farrapos de espuma que se espraiavam pelo convés, os soldados (que não tiveram direito a resguardarem-se no interior do navio) lá se protegiam como podiam, escondidos debaixo das capas de oleado, entrelaçados por entre as peças de artilharia ou debaixo das escadas que davam acesso à Torre de Comando, e aí se defendiam da borrasca que salpicava enfurecida do Índico.
Foi devido à ondulação que um militar da C.AÇ 3309(1) quando se preparava para saciar a sede, desmaiou, tendo partido quatro dentes, não podendo desembarcar em Palma e ter seguido no mesmo vaso de guerra para Porto Amélia, e dali ser evacuado para o Hospital de Nampula.
A Corveta NRP "João Coutinho", transportando muitas ansiedades espelhadas nos rostos prenhes de incertezas, depois de um dia de viagem fundeou ao largo da povoação de Palma ("cada vêz mais próximo do inferno") quando decorria o dia 23 de Fevereiro de 1971 pelas 11,30 horas, tendo a C.CAÇ. 3309 ali permanecido escassas horas para ser transportada em coluna militar para o Aquartelamento de Pundanhar e posteriormente para Nangade, bem no centro do Planalto dos Macondes, onde chegaria no dia 25 do mesmo mês para depois, e passados apenas três dias, ser enviada para a fronteira com a Tanzânia nas margens do rio Rovuma (...)
Carlos Vardasca
22 de Fevereiro de 2008

Foto 1: Corveta NRP "João Coutinho"
Foto 2: Vista da povoação de Palma
(1) Adelino da Assunção Pimenta Alvim, Soldado Rádio Telegrafista da C.CAÇ. 3309

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

"...E ali ficámos amontoados em Porto Amélia"

(...) Depois de ter passado a Cidade do Cabo e aquela "ponta tenebrosa" onde confluem as correntes do Atlântico e do Índico, o navio "Niassa" fazia agora uma espécie de navegação de cabotagem, sempre próximo da costa, avistando-se ao longe as montanhas da África do Sul. O mar estava alterado, com a espuma muito branca a espreguiçar-se sobre as ondas de um azul oceano, que faziam balançar aquela "nau catrineta com um punhado de guerreiros a bordo". Para traz também já tinham ficado as cidades de Port Elizabeth e Durban, tendo o "Niassa" atracado no porto de Lourenço Marques (Maputo) no dia 14 de Fevereiro de 1971 pelas 10,00 horas, perante a total indiferença da população de origem europeia, que dizia com um certo desprezo que roçava a arrogância:
- Guerra? - não sentimos nada aqui. - Isso é lá para o norte! - Eles que se entendam, não é nada connosco.
Em Lourenço Marques (mesmo ali no cais) todo o Batalhão recebeu o armamento (G3) e outros apetrechos militares, tendo desembarcado nesta cidade a C.CAÇ. 3311 que foi posteriormente aerotransportada para o Aquartelamento de Negomano na Província de Cabo Delgado, seu destino final.
Navegando sempre para norte e depois de ter permanecido um dia no porto de Nacala, o "Niassa" atracou na cidade de Porto Amélia (Pemba) no dia 20 de Fevereiro de 1971, tendo nessa cidade desembarcado o resto do Batalhão, seguindo a CCS e a C.CAÇ. 3310 via aérea para Mueda, e a C.CAÇ. 3309 (que por motivos operacionais se separou do Batalhão) ficou naquele porto, amontoada debaixo do alpendre de um edifício portuário até ao dia 22, e aí, com os seus soldados mal acomodados e dormindo no chão, aguardou transporte por via marítima para Palma, a bordo da Corveta NRP "João Coutinho" (...)

Carlos Vardasca
20 de Fevereiro de 2008

Foto: A Companhia de Caçadores 3309 no cais de Porto Amélia, onde aguardou embarque a bordo da Corveta NRP "João Coutinho" com destino a Palma.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

"...Os livros que me acompanharam"

(...) Quando foi decretada a mobilização para Moçambique da Companhia de Caçadores 3309, todos nós viemos passar alguns dias a casa antes de embarcarmos, depois de nos termos apresentado em Viana do Castelo e desta cidade partirmos em direcção ao Cais de Alcântara em Lisboa. Em casa, e quando fazia as malas, para além de tudo o que era essencial levar, acomodei a um canto de uma das malas alguns livros. Alguns deles não primavam pela vulgaridade, mas sim pela carga emblemática que transportava a sua prosa e pela mensagem panfletária que transmitiam.
Embora já os tivesse lido vezes sem conta, considerava-os um pedaço de mim e dos quais não me queria separar.
Com a chegada da C.CAÇ. 3309 a Nangade, no norte de Moçambique, tratei logo de arranjar uns cunhetes de munições do Obus 14 vazios, e deles fazer uma estante, alinhando-os de forma a que todos os que coabitavam naquela caserna os pudessem folhear como se tratasse de uma "biblioteca pública", tendo por companhia outros exemplares, que mais tarde outros soldados se prestaram a preencher o espaço ainda vazio daquelas caixas de munições.
De todos os livros que levei (onde imperava a variadade de temas para além dos já citados) o mais lido era a "Lolita" de Vladimir Nabokov que o "Foz" dizia despertar-lhe outros suores, e que outros confessaram despertar-lhes sensações estranhas ao ponto de serem presa fácil da masturbação.
No meio daquele aperto de vários volumes que se acotovelavam uns contra os outros, conviviam lado a lado com a "Lolita" (sem que se deixassem seduzir), "Memed, meu falcão" de Yachar Kemal; "Para que a terra não esqueça" de Léon Weliczker; "A Rua" e a "Ponte", ambos de Manfred Gregor e um outro mais panfletário; "A Mãe" de Máximo Gorky, que o "Mogadouro" nem sequer tentava tocar-lhe, com receio que aqueles "Ventos de Leste" lhe retirassem a vontade de se alistar na GNR (como era sua intenção e que se concretizou) quando regressasse da guerra.
Tal como eu, todos aqueles livros sobreviveram àquele conflito colonial, embora mais gastos e empoeirados devido ao manuseamento um pouco desajeitado de alguns, obras que ainda hoje conservo como uma espécie de "troféus" resgatados depois de uma longa "odisseia literária", que ajudou a esquecer o isolamento apesar de teimosamente se mostrar sempre presente (...)

Carlos Vardasca
19 de Fevereiro de 2008

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

" ... O assalto à cidadela fortificada"


(...) Foi num ápiçe que o li. Bastaram dois "pedaços" de leitura: um da parte da manhã e outro à noite, para me debruçar sobre aquelas 224 páginas e concluir com bastante agrado a leitura daquele romance. É de facto uma excelente obra. "Eldorado" não nos fala da guerra que consumiu a nossa juventude em África, mas de outra, também dramática e muito actual, e que a cada momento devolve corpos disformes, exaustos, às costas do sul da Europa, sacudidos pelas tempestades do Mediterrâneo. Fala-nos dos imigrantes do norte de África que se aventuram no "assalto à Europa fortificada", pois aí dizem encontrar os celeiros repletos enquanto nas suas barrigas se "saboreia a escassêz". Dos vários (não muitos) que já vem sendo hábito ler ao longo do ano, "Eldorado" foi o primeiro livro que li em 2008, e a sua história comovente, é uma espécie de "murro no estômago das nossas consciências", quando nos confrontamos com a atitude do Comandante Salvatore Piracci que, depois de ter passado vinte anos a patrulhar a costa Italiana na protecção das fronteiras marítimas, mas também a recolher náufragos abandonados em alto mar pelos passadores e traficantes sem escrúpulos, decide abandonar tudo e encetar a mesma viagem mas no sentido inverso.

É um livro que se recomenda. De leitura fácil, que não obriga o leitor a exercitar outras interpretações para além daquilo que está a ler, não deixando no entanto de ter uma narrativa muito sóbria e bem marcante do drama daqueles povos que "ousam meter-se a caminho para inventarem uma terra prometida"

Se aquele Comandante acabou por reconhecer que em "cada vida que salvou, houve um sonho que se desfez", então por que razão continuamos "do alto das nossas muralhas a atirar setas para aquelas ordes de invasores", impedindo-os de partilhar dos nossos celeiros e das riquezas que autrora lhes saqueámos?

Carlos Vardasca
18 de Fevereiro de 2008

"Eldorado"
Autor: Laurent Gaudé
Edições ASA
224 páginas
Preço: €12,00

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

"... Olha o hélio ... olha o hélio"


(...) Olha o hélio...olha o hélio! era uma espécie de "grito de guerra" que era entoado logo que ao longe se avistava aquele minúsculo ponto muito para lá da copa das árvores, refugiado entre as nuvens para fugir ao alcançe das anti-aéreas da FRELIMO. Mal se ouvia aquele barulho tão familiar das suas héliçes e o helicóptero já sobrevoava a baixa altitude, aquele ritual surgia como se tivesse sido ensaiado, o que levava o capitão Hélio Moreira da Companhia de Caçadores 3309 por vezes a indignar-se, de desconfiado que ficava se nas entre-linhas daquela imensa alegria não houvesse ali algum motivo de chacota. O helicóptero deslocava-se ao Aquartelamento de Tartibo com uma periodicidade de quinze em quinze dias, levando àquele amontoado de tendas protegido em todo o seu redor por montes de areia, e encravado no final das escarpas do Planalto dos Macondes, alguns abastecimentos frescos e o tão almejado saco do correio, que era o verdadeiro motivo daquele ritual que por vezes parecia ser cantado em coro. Depois da distribuição da correspondência e com os ânimos já mais tranquilos, uma certa ansiedade abatia-se sobre o Aquartelamento, onde cada um se refugiava no seu canto para saborear aqueles "gatafunhos", que se acotovelavam entre as apertadas linhas azuis mas com sabor a notícias frescas. Quem estivesse de parte a observar, descortinava no meio daquela "meditação colectiva" uma mistura de vários silêncios, por vezes interrompidos; ora pelo franzir do rosto ou pelo brilhar de uma lágrima que teimava em cair, muitas vezes motivado pelo nascimento de um filho que tardou em nascer ou pelo anúncio de um amor bastas vezes traído pela ausência.
Depois de vazio, o saco do correio era inglóriamente atirado para um dos cantos da secretaria, e ali jazia até que no seu interior se acomodasse um novo amontoado de envelopes e "bate-estradas"(1) prenhes de "lamúrias", até que o helicóptero os levasse de volta, indiferente às lamentações e a uma ténue alegria, que seriam depois entregues numa qualquer aldeia distante, onde uns lábios carentes as iriam soletrar vezes sem conta (...)

Carlos Vardasca
13 de Fevereiro de 2008

Foto: Soldados da Companhia de Caçadores 3309 assistem à distribuição do correio no Aquartelamento de Tartibo. Cabo Delgado. Norte de Moçambique 1971.
(1) Aerogramas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

" ... Quando o egoísmo é fabricado pelo medo."


(...) O dia já tinha corrido mal naquela coluna de reabastecimento entre os Aquartelamentos de Palma e Pundanhar, com o rebentamento de uma mina anti-pessoal que amputara a perna ao soldado que a pisara, causando ferimentos ligeiros num outro soldado condutor que estava próximo. Efectuadas as evacuações de helicóptero, a coluna não pode reiniciar a marcha com a falta de um condutor e, por esse facto, houve necessidade de se comunicar com o Aquartelamento de Pundanhar que ficava à distância de 12 quilómetros para que enviassem um condutor para substituir o que tinha sido evacuado. A Companhia que estava estacionada naquele Aquartelamento era a Companhia de Caçadores 2703, e o seu condutor assim que chegou ao local do acidente e viu que tinha que conduzir uma viatura Mercêdes, desguarnecida de qualquer protecção lateral e sem sacos de areia que amortecessem qualquer impacto de uma mina que eventualmente viesse a rebentar no seu rodado, disse logo todo irritado:

- Eu não conduzo essa merda! - ainda por cima faltam-me só quatro meses para acabar a comissão.

O alferes, comandante da coluna de reabastecimento ainda lhe perguntou porquê, ao que ele respondeu:

- Não conduzo porque se rebentar uma mina anti-carro nessa viatura eu "lerpo que nem uma pinta".

Perante tanta recusa e ao saberem que seguia na coluna o soldado Gonçalves da Companhia de Caçadores 3309, que conduzia uma Berliet e que tinha chegado à pouco tempo a Moçambique em rendição individual, logo se encarregaram de exigir àquele soldado que cedesse a sua viatura dado que, por ser Checa(1) teria que "hierárquicamente" (e segundo o conceito tão em voga naquelas mentalidades) que se expôr mais aos perigos do que os mais velhos.

O Gonçalves, (de alcunha o "Lixa") ainda tentou contrariar aquelas intenções que considerou retrógadas e de um egoísmo atroz, mas, obedecendo às ordens do Alferes (que defendeu aquela lógica tão desumana) teve que ceder a sua viatura que muito trabalho lhe deu a reforçar com os meios indispensáveis à sua protecção, e conduzir até Pundanhar a viatura Mercêdes (e posteriormente até Nangade numa distância de cerca de 40 quilómetros), totalmente desprotegida e sujeita a todas as consequências resultantes do rebentamento de minas anti-carro, que eram um dos flagêlos com que conviviam diáriamente os soldados que participavam naquele tipo de operações de reabastecimento.
Conscientemente ou não, este tipo de egoísmo "fabricado pelo medo" (embora não fosse generalizado) era muito frequente e assumido nas nossas fileiras, cultivado por uma falsa hierarquia baseada na "velhiçe", cujo conceito estava empregnado de uma desumanidade encoberta por um falso "direito à existência", como se a vida de cada um "estivesse dependente de um calendário e da vontade dos mais fortes".
Carlos Vardasca
12 de Fevereiro de 2008

Foto: O Soldado Condutor Manuel Teixeira Gonçalves da C.CAÇ. 3309, junto de uma Berliet minada com um dístico que visava impressionar os "Checas".

(1) Nome atribuído pelos soldados mais antigos aos recém chegados às zonas de combate.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

" ... Já cá canta a pensão do Vietname"



(...) Em Novembro de 2007 esteve cá em casa uma visita inesperada. Quando tocaram à campaínha, pensei ser o carteiro que me vinha trazer mais um álbum de fotos de guerra que me têm sido enviados com alguma regularidade pelos meus companheiros da ex-C.CAÇ. 3309, mas não. Quando abri a porta, vi o Pilhas Secas" (1) ironicamente todo sorridente, exibindo um pequeno impresso:
-Epá Braz, sabes o que é isto? - finalmente começei a receber a "pensão do Vietname".
Durante o almoço conversámos sobre o assunto, e ambos concordámos que aquela verba se tratava de uma ninharia atribuída anualmente aos ex-combatentes pela sua participação em zonas de conflito, verba essa que seria decerto muito mais compensatória se fosse distribuída a quem de facto mais necessitaria dela.
Os parcos 107 Euros atribuídos anualmente (cerca de 8 Euros mensais), para além de não compensar ninguém pelo esforço de guerra a que foi obrigado devido à política colonial dos "velhos do Restelo", também não são de modo algum uma forma de dignificar os ex-combatentes (como dissera na altura o então ministro da defesa Paulo Portas). Quando na altura se falava em legislar sobre essa matéria (e embora não estivesse ainda abrangido por ela) tive a oportunidade de escrever para o então ministro da Defesa onde dizia, entre outras questões, o seguinte:
- Começando por discordar dos fundamentos da mesma lei, os fins que a mesma visava associada a objectivos meramente eleitoralistas, e independentemente da verba que viesse a ser atribuída, eu dizia que pela minha parte (e decerto pela parte da maioria dos ex-combatentes) prescindiria de a receber em favor daqueles que realmente estão mesmo necessitados desse complemento de reforma por muito ridícula que ela fosse, como se veio a comprovar após a aplicação da referida lei.
Eu referia-me aos ex-combatentes com stress de guerra pós-traumático, que ainda hoje transportam consigo os horrores da guerra com graves consequências na sua vida familiar; aos estropiados, invisuais e amputados que são aos milhares e que vivem com bastantes dificuldades na atribuição de próteses e meios de locomoção; enfim a uma imensidão de ex-combatentes que se vêm abondonados por uma sociedade que se serviu deles e agora os ingnora, no sentido de verem melhoradas as suas condições de existência e aumentadas as parcas pensões que actualmente usufruem e delas tentam sobreviver.
É claro que aquela carta foi logo atirada para o "arquivo geral" (2) como tantas outras que os governantes ou os seus assessores fingem não entender, continuando a não dar as respostas adequadas à dimensão com que este drama merece ser tratado.
Estou-me a lembar de um dos últimos casos de que tive conhecimento, e que decerto aconteceu por falta de acompanhamento, de que um ex-Alferes com quem convivi em Nangade e passámos horas amargas e de muita ansiedade nas picadas no norte de Moçambique, se suicidara no passado dia 10 de Dezembro de 2007 em circunstâncias muito estranhas. Há muito que sofria de stress de guerra, decidindo últimamente refugiar-se numa das matas da Marinha Grande, escondendo o seu carro camuflando-o com a vegetação "para que não fosse visto pelo inimigo", e aí sobreviver durante quinze dias, alimentando-se de pequenas raízes e de lapas que aproveitava colher com a maré vazia, como se estivesse a lutar pela sobrevivência numa operação em pleno conflito colonial, acabando por termo à vida de uma forma tão inglória, ao fim de 36 anos do seu regresso de África (...)

Carlos Vardasca
08 de Fevereiro de 2008

Fotos: Posto de Rádio do Aquartelamento de Nova Torres e Manuel José Rodrigues Alexandre (Pilhas Secas), ex-Furriel Miliciano de Transmissões da C.CAÇ. 3309, junto do Obus 14 no Aquartelamento de Tartibo.

(1) Alcunha atribuída àquele militar como referência à sua especialidade.
(2) Vulgarmente conhecido por caixote do lixo.






terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

" ...Indignação em Luanda"


(...) Eram cerca da 18,00 horas do dia 05 de Fevereiro de 1971 quando o navio "Niassa" atracou no porto da cidade de Luanda, após doze dias de viagem, tendo partido no dia seguinte rumo a Lourenço Marques (Maputo) onde chegaria nove dias depois.
Durante a viagem, quem escreveu para a família, tinha agora uma boa oportunidade de enviar a correspondência, dado que os soldados foram autorizados a sair do navio e desanuviar um pouco pela cidade. Eu, o Nabais(1) e o "Foz"(2) dirigimo-nos a uma pequena esplanada ao fundo da marginal de Luanda e próximo da cervejaria "Baleizão", e aí aproveitámos para concluir alguma escrita em atraso e refrescar a garganta ressequida com três avultadas canecas de cerveja preta. A dado momento, reparei que o Nabais (secundado pelo Foz) deixara de prestar atenção à escrita, tendo posteriormente também todas as atenções dos presentes naquela esplanada (na sua maioria militares) se dirigido para um dos extremos do estabelecimento, onde ocorria algo que provocou a indignação de todos. O proprietário do estabelecimento (de muito gordo que era que todo o seu corpo se balanceava como se fosse uma gelatina) depois de ter arrancado um dos jornais da bolsa do miúdo que os vendia, devolveu-o, depois de o ter lido demoradamente, amarrotando-o enquanto dizia:
- Saiam daqui seus pretos d'um cabrão - esse jornaleco só diz é mentiras - enquanto pontapeava uma caixa de graxa de um outro miúdo que se preparava para engraxar as botas de um dos militares, danificando-a, partindo todos os frascos de tinta e espalhando toda a pomada pelo passeio. De irritados que ficámos com aquela situação, dirigimo-nos ao proprietário do estabelecimento e dissemos-lhe, depois de alguma discussão, que não pagariamos a nossa despesa enquanto ele não pagasse aos miúdos o prejuízo que lhes causara, atitude que foi logo apoiada pela maioria dos soldados ali presentes. Depois de muita insistência, o indivíduo "gelatinoso" lá decidiu indemnizar os miúdos com uma verba que eles acharam justa, pensando nós que a situação ficara resolvida por ali. Passados alguns momentos e por estranho que possa parecer, tinham acabado de chegar à esplanada um Unimog 404 da Polícia Militar e uma outra viatura civil, que assim que chegaram perguntaram, dirigindo-se ao proprietário:
- Então onde estão esses arruaçeiros?
De uma das mesas da esplanada levantou-se um padre que disse sem demora:
- São aqueles senhor agente - Dirigindo-se a um deles que estava à civil (que mais tarde soubemos ser da PIDE/DGS, apontando para nós os três.
Tinha toda a lógica que o proprietário da esplanada telefonara às autoridades contando a sua versão dos acontecimentos, dado que os agentes à civil deram ordens ao Alferes da Polícia Militar para nos levar de volta ao navio "Niassa", e ali apresentar queixa ao comandante do Batalhão que seguia a bordo.
Chegados ao cais, e já quando subiamos as escadas que davam acesso ao portoló do navio, surpreendentemente, o Alferes que comandava a patrulha da Polícia Militar disse-nos, afastando-se um pouco dos restantes soldados da patrulha:
- Epá! eu não me sinto com coragem de participar de vocês - vão se lá embora e não contem o ocorrido a ninguém - continuando:
- Embora sejamos nós que sofremos mais com ela, esta puta de guerra não é nada connnosco: - os "abutres" da PIDE que se lixem.
Aquele oficial não só decidiu não fazer qualquer participação do ocorrido, como também (e antes de o Unimog partir em alta velocidade) nos disse:
- Epá! só vos desejo é boa sorte, e agora lá em Moçambique para onde vão, não se aventurem - olhem que a pátria sempre foi madrasta para com os seus heróis (...)
Carlos Vardasca
05 de Fevereiro de 2008
(1) Soldado Condutor da C.CAÇ. 3309, falecido em 07 de Maio de 2007.
(2) Soldado Condutor da C.CAÇ. 3309 (actualmente em parte incerta)
Foto: Vista do porto de Luanda.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

" ... As viúvas do Império"


(...) Era a alegria da criançada da aldeia, quando o carteiro aparecia lá no cerro junto à casa do ti Zé das Cabras e descia com a sua velha Zundap até ao centro do lugarejo. As crianças corriam a avisar os pais da sua chegada, indo estes concentrar-se junto da venda do Ti Juvenal onde o carteiro era hábito deixar a correspondência para que aquele fizesse a sua distribuição. Naquele dia, e depois de deixar a maioria da correspondência na venda, o carteiro dirigiu-se na direcção da casa da Maria Perpétua com um pequeno impresso que retirara da sacola, tendo dito ao Ti Juvenal que aquele telegrama tinha que ser entregue em mão ao destinatário. As pessoas ali concentradas e pressentido algo de estranho, acompanharam o carteiro até à casa da sua vizinha para se certificarem das suas desconfianças. Depois de entregue o telegrama à destinatrária, esta, como não sabia ler, pediu ao funcionário dos CTT (já com as mãos muito trémulas e afrontada de suores) que lhe fizesse o favor de ler o seu conteúdo, ao que este respondeu (já prevendo que tipo de informação ali vinha, pois já não era o primeiro telegrama que entregara vindo do mesmo organismo militar) não o poder fazer pois estava com muita pressa para entregar o resto da correspondência nas outras aldeias vizinhas, livrando-se daquela forma, de ser ele a transmitir o que já vinha sendo o motivo de muita angústia em grande parte das aldeias das redondezas.
A Ti Zulmira a muito custo e com bastante receio do seu desfecho, lá se ofereceu para ler aquele pedaço de papel emanado do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, ficando estupefacta com o que acabava de ler só para si, abraçando a Maria Perpétua com tanta força dizendo-lhe (inundada em lágrimas que caiam por cima do seu ombro) ao mesmo tempo que lhe saía do peito um desabafo entre soluços mas tão forte, que parecia querer avisar toda a aldeia:
- O seu Amílcar morreu vizinha Perpétua...é o que diz aqui!
- O seu filho morreu em combate em Moçambique!
Logo toda a aldeia se concentrou no largo da fonte a comentar o ocorrido:
- Então eles não diziam que já não havia guerra e que os feridos ou mortos que houvessem era tudo devido a acidentes de viação? - comentava uma jovem aldeã bastante comovida, pois conhecera o Amílcar desde os tempos da escola primária.
- Isso é tudo mentira menina! - respondeu a mulher do Ti Juvenal - continuando:
- Eles pensam que nos enganam (disse dirigindo-se a todos os presentes no largo) mas o meu filho, a quem faltam três meses para regressar daquele inferno, tem-me escrito de lá e contou-me que só na sua Companhia (1) já tinham morrido 14, e ficado feridos uns 44, e tudo por causa lá dos pretos que os atacam ora no aquartelamento ou na mata, por onde eles andam com o capim até por cima das orelhas (...)
Carlos Vardasca
02 de Fevereiro de 2008
Desenho de Carlos Vardasca. 1988
(1) Companhia de Caçadores 3310, estacionada no Aquartelamento de Omar na Província da Cabo Delgado, no Norte de Moçambique.