sábado, 29 de dezembro de 2007

"... que 2008 seja mais solidário"


(...) Nas férias do colégio, aquela criança habituara-se desde muito cedo a vasculhar os jornais que encontrava em cima das mesas da taberna do senhor Eduardo, quando ali se dirigia a pedido do pai para comprar meio litro de vinho para o almoço. De início, interessava-se apenas pelas tiras de banda desenhada, que o faziam folhear o jornal até à última folha sem se interessar pelas outras e, conforme foi crescendo, já se ficava pelas notícias de primeira página, tal era já o seu interesse pelas questões que preocupavam o mundo. Ainda em criança (pelos seus dez anos de idade) todos os tostões que amealhava dos recados que fazia às vizinhas lá do pátio, faziam-no correr para a papelaria na rua Direita em Santarém e aí comprar o jornal "O Século" (que custava 1 Escudo) alimentando sempre a ideia de que (quando já fosse adulto) aqueles conflitos e a miséria que grassavam pelo mundo ali retratados, há muito já estariam resolvidos.
Hoje, aquele miúdo feito homem, não só verifica que não foram resolvidos mas que se agravaram, e que pareçem não ter fim à vista. Embora por motivações diferentes, as guerras continuam a traçar novas fronteiras mas injustas; a fome, o êxodo das populações famintas fugidas dos conflitos étnicos forjados pelo ocidente, continuam a ser ignorados; as matérias primas continuam a ser saqueadas do continente africano com a conivência dos seus dirigentes ao serviço de interesses neo-coloniais, enquanto a norte do planeta se vive na opulência e se semeia (salvo raras execpções de uma imensa minoria) a indiferença façe àquela realidade. Por isso, aquele miúdo hoje feito homem, ainda não se esqueçeu de uma frase lida num desses jornais, dita por um dirigente africano numa conferência internacional, e que dizia:
"Quando os brancos chegaram a África,
nós tinhamos as terras e eles a bíblia.
Eles ensinaram-nos a rezar de olhos fechados
e, quando os abrimos, eles tinham as terras
e nós a bíblia"
Jomo Keniatta
Volvidos tantos anos e apesar de tudo, e por pensar que o egoísmo ainda é a arma de arremesso daqueles que fazem da indiferença o seu modo de vida, e que olham para o lado fingindo ignorar (do alto do seu conforto) as tragédias que pareçem não ter fim à vista, aqui fica o desejo do tal miúdo feito homem, de que (apesar de ser uma hipótese muito remota) 2008 seja um ano mais solidário (...)
Carlos Vardasca
30 de Dezembro de 2007

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

XVIII Encontro Nacional da C.CAÇ. 3309


Amigos. Vai realizar-se no próximo dia 08 de Março de 2008 em Matos da Ranha - Pombal, Restaurante "Litoral", o XVIII Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309 ou seja, o 35º Aniversário do seu regresso de Moçambique em 06 de Março de 1973. O Encontro realiza-se pelas 10,00 horas com o Mata-Bicho e aperitivos de Boas-Vindas. Pelas 12,00 horas realiza-se na Capela de Nsrª da Boa-Viagem uma Celebração Eucarística em memória dos camaradas falecidos, e pelas 13,00 horas o almoço de convívio.

Ao cair da tarde, para despedida, há bolo de aniversário regado com champanhe da região, assim como a tradicional animação com música ao vivo.

A avaliar pelos Encontros anteriores, vai ser um dia bastante animado, de convívio fraterno, onde se recordam algumas vivências e se abraçam amigos de longa data.

Caso manifestes interesse em ir, podes contactar com o João Arteiro (telef:252638359/telem:965804751/e-mail: joaoarteiro@sapo.pt) cujas marcações podem ser feitas até ao dia 03 de Março de 2008.

Aproveito para informar que no Sábado seguinte, dia 16 de Março de 2008, realiza-se na mesma localidade e respectivo restaurante (Litoral), o Almoço de Confraternização do Batalhão de Caçadores 3834 (CCS, C.CAÇ. 3309, C.CAÇ. 3310 e C.CAÇ. 3311), estando a sua organização a cargo de João Russinho Marques (telef:219813340/telem:969093325/e-mail: geral@jtmelectronica.com).

Compareçam e recordem em concívio, um pedaço das nossas vidas "que nos foi roubada sem jeito nem prosa".

Carlos Vardasca
26 de Dezembro de 2007

Foto: Cartaz do XVIII Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

"...o que sobra é para os mendigos"


(...) Não é intencional, mas quantos de nós, nesta noite de natal e no aconchego do nosso lar, enquanto mergulhamos nas travessas inundadas de couves e bacalhau, não reparamos que não nos sobra tempo para nos lembrarmos de quantos vegetam nas arcadas do Terreiro do Paço em Lisboa; pelas ruas escuras da Ribeira do Porto ou num qualquer recanto do interior esquecido das capitais, aconchegados do frio num pedaço de cartão, que por sinal já fora guarida de um qualquer brinquedo ofertado a um dos nossos familiares.

Neste dia, as carrinhas de várias organizações de solidariedade circulam pelos lugares que já conhecem de tanto os decorarem anualmente por estas alturas, e tão depressa esquecidos quando as câmaras e os holofotes se desviam para registar mais um anúncio de uma ridícula plástica da Lili Caneças.

O mundo de facto está cada vez mais desigual, e até pareçe que convém à sociedade manter alguns desafortunados para os exibir anualmente numa espécia de "montra", onde as reportagens exibem uma caridadezinha sazonal para que os "abastados da sorte" sintam a sua consciência um pouco mais tranquila, por terem introduzido no "bornal dos peditórios" uns magros centimos para descarga da sua consciência, como se isso os ilibasse das culpas de uma certa indiferença militante que roça as margens de um certo desprezo exibicionista, associado ao mais vil egoísta sentimento mercantilista.
Nesta noite de natal, este singelo contributo vai para todos aqueles que neste momento se debatem entre o aconchego da alma num qualquer resguardo feito cartão iluminado pelos holofotos do momento, e a luta intensa entre a ilusão de que a sua vida nómada será resolvida nas passerelles das manchetes dos telejornais, onde são lembrados anualmente, para tão depressa serem esquecidos num virar de página, entre a opulência e a arrogância atroz de um qualquer jogador de futebol que exibe a sua renúncia a um contrato pelos "míseros milhões de Euros" (...)
Carlos Vardasca
25 de Dezembro de 2007

domingo, 23 de dezembro de 2007

"...Entre o Kaúlza e o Cerejeira, venha o diabo e escolha"


(...) Em épocas natalícias era habitual os aquartelamentos serem visitados por altas individualidades militares, sempre acompanhadas por entidades religiosas, o que comprovava que a igreja sempre esteve de "braço dado" com o Estado Novo e conivente com a política colonial. Aguardava-se em Nangade no dia 26 de Dezembro de 1971 a visita de Kaúza de Arriaga, General Comandante-Chefe em Moçambique, e falava-se que o Cardeal Cerejeira o acompanhava nessa missão "envagelizadora" das tropas situadas a norte, mais concretamente no Planalto dos Macondes. Nas casernas e nas tendas, por vezes as conversas situavam-se à volta daquela visita, para uns com alguma expectativa e regozijo, enquanto que para outros (uma imensa minoria mais esclarecida) a visita era tratada com alguma indiferença, ouvindo-se com frequência dizer-se no interior das tendas:

- Entre o Kaúza e o Cerejeira venha o diabo e escolha, pois comem os dois da mesma gamela".

O Cardeal do regime acabou por não fazer parte da comitiva, e a maioria dos soldados, uns por mera curiosidade outros incitados pelos seus comandantes, tal como as populações dos aldeamentos que para ali foram levados pelo Administrador de Posto com a conivência dos Régulos, lá foram esperar o General à pista de aterragem de terra batida, enquanto que ao longe, numa das casernas ouvia-se:


Ora vai para o mato,
oh meu malandro,
por causa de ti
é que eu aqui ando
é que eu aqui ando
é que eu aqui ando...


Lembro-me que naquela altura entrou na caserna um Furriel da CCS do Batalhão de Artilharia 2918 estacionado em Nangade, de alcunha o "Coca-Cola", que era hábito participar nos nossos petiscos, e dizer, manifestando alguma preocupação:


- Epá malta, não cantem essa merda - então não sabem que nestas alturas Nangade fica apinhada de PIDES por todos os lados?
- Alguns deles misturados na comitiva e outros disfarçados de fotógrafos? (...)
Carlos Vardasca
23 de Dezembro de 2007
Foto: Kaúlza de Arriaga passa revista ao Agrupamento de GEs em Nangade. Por detrás do General e fardados de GEs, podem ver-se o então Alferes Diamantino e o Furriel Vilela da C.CAÇ. 3309, destacados para comandar aquela força de intervenção composta somente por naturais da então Província de Moçambique.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

"...Uma insólita prenda de natal"


(...) O Planalto dos Macondes era uma das zonas nevrálgicas no norte de Moçambique onde se fazia sentir a influência da FRELIMO, sendo por esse facto alvo de várias operações por parte de forças operacionais do exército, dos comandos assim como das tropas Paraquedistas.

Foi com esse objectivo que dois Grupos de Combate do Batalhão de Caçadores Paraquedistas 31 acamparam em Nangade durante algum tempo, cuja missão era serem helitransportados para atacar a Base BOANE da FRELIMO próximo do lago Lidede. Dessa força de Paraquedistas fazia parte o Duarte, meu velho amigo e companheiro de Santarém, que durante a sua permanência em Nangade me possibilitou usufruir do rancho melhorado que aquela força de paraquedistas proporcionava aos seus soldados, comparado com o incaracterístico "arroz com peixe" que nos era servido repetitivamente até à exaustão no rancho do Batalhão de Artilharia 2918 estacionado em Nangade. Nessa base da FRELIMO então destruída foram capturadas algumas armas e vários documentos considerados importantes, assim como algumas caixas com propaganda ideológica onde se encontravam vários exemplares do Tomo 1 das Obras Escolhidas de Mao Tsetung. Como em todas as operações, há sempre quem queira ficar com algum "troféu" para recordação, e o Duarte, sabendo das minhas convicções (que por acaso também as partilhava), sem que o comandante do seu grupo de combate se apercebesse (claro que não foi só ele) escondeu nos bolsos do camuflado alguns exemplares daquela obra, apesar das ordens em contrário do mesmo oficial, que ordenou que tudo o que fosse encontrado teria que ser entregue para averiguações. Estavamos na noite do dia 24 de Dezembro de 1971, e quando aquela força de Paraquedistas regressou da operação já com a noite a abater-se sobre o Aquartelamento, a primeira coisa que o Duarte fez, foi (antes de se deslocar para o seu acampamento) dirigir-se ao abrigo onde me encontrava e, acenando-me para que viesse ao seu encontro mas fora do abrigo, dizendo-me baixinho:

- Toma! - eu sei que isto não tem nada a ver com a época mas é a minha prenda de natal. Acrescentando:

- Envolvi-o num velho papel de jornal que encontrei no caminho para o encobrir, mas vais gostar:
- Só peço que não o abras à frente dessa malta toda pois nós nem sabemos em quem confiar.
A minha curiosidade fez com que, mesmo antes de chegar à caserna, rasgasse o papel de jornal onde aquela insólita oferta vinha envolta e (depois de me aperceber do que se tratava) para minha satisfação mas ao mesmo tempo preocupação, refugiei-me na caserna a folhear as páginas daquela obra que já eram naquela altura (embora em surdina) a minha fonte de inspiração ideológica.
Mais tarde, e ainda no mesmo Aquartelamento mas em outras circunstâncias que não interessa ainda descrever (mas que o farei em outra altura que considere adequada) foram-me oferecidos outros volumes da mesma obra que ainda hoje os guardo (apesar de já não me rever naquelas teorias) dentro do "baú das minhas memórias" e relacionadas com aquele conflito, para onde fui enviado "sem jeito nem prosa" (...)
Carlos Vardasca
22 de Dezembro de 2007
Foto: Exemplar do Tomo 1 das Obras Escolhidas de Mao Tsetung (edição em português) encontrado na Base BOANE da FRELIMO, próximo do Lago Lidede (Coord. 3931,9.1101) pelo Duarte, 1º Cabo Atirador do Batalhão de Paraquedistas 31.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Onde ficou o natal?


Onde ficou o natal?


No meu caminhar incerto
entre ruas iluminadas,
vejo espelhados nas montras, sorrisos,
são crianças fascinadas.


Mas nas montanhas cobertas de neve
onde o frio esconde canseiras,
faces rosadas, carentes,
brilham ao crepitar das lareiras.

Nuns, brilha uma felicidade encenada
por compromissos sazonais,
noutros, uma infância moldada
pela broa que escasseou nos bornais.

Há brinquedos que esperam sozinhos
em montras prenhes de carências,
outros, tão depressa morrem nos sótãos
numa solidão parida de opulências.

As crianças não devem crescer assim,
separadas por muros, por medos,
se os sorrisos são universais,
porquê só no natal?
se todos nós somos brinquedos.


Carlos Vardasca
Poema escrito em 18 de Dezembro de 2003
Foto: Elementos da C.CAÇ. 3309 festejam o natal de 1971 no Aquartelamento de Tartibo.

sábado, 15 de dezembro de 2007

"...Oxalá não tivesse sido assim"


(...) Quantas vezes no nosso dia a dia nos confrontámos com histórias (que roçavam quase o ridículo) contadas por vezes em jeito de uma pseudo-heroicidade inexistente e ainda no rescaldo do entusiasmo da participação no conflito colonial, muitas vezes contadas por quem, apesar de ter sido mobilizado, sempre observou a Guerra Colonial das cidades e nunca "saiu do arame farpado" e não viveu (e ainda bem que não) todos os dramas porque passaram quem convivia diáriamente de perto com os dramas ocorridos na frente de combate. O ano passado, no Café da Júlia, e porque calhou em conversa, contei a um amigo meu um episódio passado com a Companhia de Artilharia 2745, que a Companhia de que eu fazia parte a foi render nas margens do rio Rovuma na fronteira com a Tanzânia. Ele não acreditou, ao ponto de ridicularizar o que acontecera, dizendo que era mais uma das histórias de quem se queria vangloriar (como se o episódio não fosse apenas o resultado do dramatismo e das condições adversas com que eram confrontados a maioria dos soldados que foram destacados para a frente de batalha). Fiquei impressionado com aquela falta de sensibilidade e, por esse facto, fui a casa buscar o relatório dessa operação militar(1) dando-o a ler a esse meu amigo que, depois de se confrontar com a realidade ali relatada, e porque também como eu é de "lágrimas fáceis" pediu-me, emocionado, desculpa pela sua ignorância. Esse relatório, de quatro páginas e que descrevia uma operação militar de cinco dias efectuada pela C.ART. 2745, dizia a determinado momento o seguinte:


(7) (...) Em 12 de Novembro de 1970 a C.ART. 2745 manteve-se na mesma zona conforme ordens recebidas, já com bastantes problemas de água, uma vez que o percurso a corta mato foi extenuante e o reabastecimento insuficiente face às necessidades. Nesse dia grande parte do pessoal deixou de comer por não ter água para acompanhar a comida, e começaram a surgir desmaios e delírios.

(8) Em 130300NOV70, aproveitando a frescura da noite e aproveitando a seiva de raízes para mitigar a sede, iniciou-se a marcha para W, pelo lado norte da picada e sempre perto desta, à mínima distância de segurança para evitar accionamento de armadilhas IN das bermas da picada e, em 130800BNOV70 atingiu-se o local coord.3952.1056,6 onde o agrupamento ficou reunido à espera de água.

Nesta ocasião, mais de 10% do pessoal estava inoperacional, os estimulantes das bolsas de enfermeiro estavam a esgotar e foi necessário dar soro a beber a um militar que apresentava sintomas de desidratação. Militares houve que, contra tudo o que está indicado e fora da vigilância dos graduados beberam urina, pelo que foram severamente admoestados. Outros ainda arranjaram forças para abrir um poço numa lângua e, como não houvesse água, chuparam a terra húmida.

Em131300BNOV70 chegou a coluna vinda de Nangade com água e racções de combate, fez-se o reabastecimento, ministraram-se comprimidos toni-hidratantes ao pessoal, todos foram obrigados a comer, pois a maioria o não fazia havia mais de um dia, e pelas 14,00 horas iniciou-se o regresso ao quartel onde se chegou em 131900BNOV70 (...)


(1) Relatório de Operações nº12/70 de 13 de Novembro de 1970, assinado pelo Capitão de Artilharia, Comandante da C.ART. 2745 José Fernando Jorge Duque.


Foto: Elementos do 3º Pelotão da Companhia de Caçadores 3309 em patrulha na picada ente os Aquartelamentos de Nangade e Tartibo. Norte de Moçambique 1971.

" ...Quando a segurança vinha do ar"


(...) Apesar de aparentarem ser uma relíquia (que o eram de facto, pois já vinham do tempo da guerra da Coreia) os Bombardeiros T6 devolviam-nos alguma segurança, quando nos sobrevoavam durante as acções de patrulhamento ou durante as operações de reabastecimento no interior da mata densa. Na maioria dos casos, eram chamados de emergência, quando a FRELIMO desencadeava fortes ataques às colunas de reabastecimento, tendo como missão bombardear as posições de onde partiam os ataques e aliviar a pressão exercida sobre as nossas tropas, sendo um dos factores de persuasão para que a FRELIMO não consumasse os seus intentos como por vezes tentou, ou seja, (para além de outros factores de ordem miltar causando o maior número de vítimas) apoderar-se das mercadorias, armamento, e dificultar a circulação das nossas tropas nos acessos às fontes de abastecimento.
Havia determinadas zonas na mata que nos causavam imensos calafrios pelo simples facto de ali passarmos, devido ao acidentado do terreno, pela altitude do capim ou pela mata cerrada que não deixava vislumbrar nada à sua frente, pois eram zonas onde normalmente aconteciam emboscadas e sempre com fins dramáticos para as nossas tropas.
No momento em que atravessávamos essas zonas críticas, o T6 era por vezes chamado para nos prestar protecção aérea, e a simples presença daquele bombardeiro, com o seu roncar ensurdeçedor por cima da copa das árvores, fazia crescer em nós algum alívio e um sentimento de aparente segurança, que (embora não fosse partilhado por todos) nos transmitia (para além de espantar momentâneamente alguns dos nossos medos) confiança e alguma certeza de que a chegada ao nosso destino estava melhor assegurada.
Um dia, no Aquartelamento de Nangade, quando eu e malta da C.CAÇ. 3309 nos aproximámos da pista para ver mais de perto aquele bombardeiro que os EUA nos tinham vendido para nos "ajudarem a travar o avanço do comunismo em África", ouvi um reporter de um jornal Sul Africano que ali se encontrava a cobrir as operações, dizer para um piloto de um T6 que estava a ser reabastecido de combustível:
- Então voçês ainda pilotam esta sucata americana que sobrou da guerra da Coreia?
- Se fosse na África do Sul à muito que este "monte de lata" já tinha sido derretido numa qualquer siderurgia. Ao que o piloto respondeu:
- Pois é... mas apesar desta "lata" abanar por todos os lados, ainda me sinto mais seguro lá em cima do que embrenhado na mata como são obrigados a andar os nossos soldados (...)
Carlos Vardasca
15 de Dezembro de 2007
Foto: Bombardeiro T6 na pista do Aquartelamento de Nangade.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

"era um magro pré que não se perdia na profundidade dos nossos bolsos"


(...) Um dia destes fui ao meu sótão buscar a àrvore de natal e, quando dei por mim, já estava a vasculhar, ávido de curiosidade, numas caixas de cartão onde geralmente se guardam tralhas que deixaram de ter um lugar de destaque nas gavetas das nossas casas. No meio de toda aquela azáfama, veio-me parar às mãos um pequeno envelope meio amarelado pelo tempo, escrito em letra de forma que dizia: - o meu primeiro pré em Moçambique. Cheio de curiosidade, "parecendo mais um menino a rasgar os envelopoes dos cromos da bola", deparei que no seu interior coabitavam junto de uma nota de mil escudos "novinha em folha", outra de cem, e mais alguns trocos em moedas da então colónia de Moçambique. Vieram-me à memória as parcas coisas que podiamos comprar com aquele magro salário elevado a pré, meras "quinhentas" moçambicanas que não chegavam a perder-se na profundidade dos nossos bolsos, mas na cantina do monhé; na cantina do Aquartelamento onde as "Laurentinas" refrescavam gargantas secas, mas também numa momentânea incursão ao interior de uma qualquer palhota coberta de colmo, onde os corpos se entrelaçavam e arfavam de prazer que se prolongava até de madrugada, antes que o cacimbo trespassasse as paredes de cana de bambú e de argamassa, e levassem a jovem negra para o trabalho árduo da machamba.
Agora que encontrei aquele dinheiro, retirei-o logo do sótão e guardei-o junto de outras memórias que também me são próximas, sem deixar no entanto de me recordar que aquele magro pré nunca me toldou as ideias, nem serviu de moeda de troca entre o "ter que estar ali", os valores e a razão (...)
Carlos Vardasca
13 de Dezembro de 2007
Foto: Nota de Mil Escudos de Moçambique, do período colonial.

"O nosso Pentágono"


(...) Depois de ter sido rendida no Aquartelamento de Tartibo pela Companhia de Artilharia 3506, em 18 de Fevereiro de 1972 a Companhia de Caçadores 3309 regressou a Nangade, onde de facto já se respirava alguma segurança embora aparente. Por questões de estratégia militar, mais tarde houve necessidade de construir um novo aquartelamento, mais próximo do itinerário que ligava os aquartelamentos de Nangade, Pundanhar e Palma (e de zonas onde se situavam os trilhos de infiltração da FRELIMO no norte de Moçambique) tendo o aquartelamento de Tartibo sido abandonado. Mais uma vez a C.CAÇ. 3309 foi chamada a intervir em 23 de Setembro de 1972, mas desta vez somente com o 3º Pelotão, que foi destacado para participar na construção do novo aquartelamento da C.ART 3506 a que se deu o nome de MUIDINE. Em operações de reabastecimento daquele aquartelamento, ainda lá me desloquei algumas vezes e, em todas elas, a sensação de isolamento era atroz e de uma violência inesquecível. Como era possível, que naquele amontoado de tendas, com um perímetro defensivo muito pequeno, protegido apenas por montes de areia em todo o seu redor e sem qualquer árvore que lhe emprestasse qualquer sombra, vivessem quase duzentos homens, para não falar do perigo que espreitava a cada instante vindo da mata circundante. Foi um alívio quando (após a construção daquele aquartelamento), no dia 25 de Outubro do mesmo ano o 3º Pelotão da C.CAÇ. 3309 regressou a Nangade, com os seus soldados extenuados, como se tivessem regressado de uma tempestade de areia, cobertos de uma camada de pó fino que não lhes deixava ver a expressão colectiva de exaustão. Foi de facto uma aventura desgastante (entre tantas outras vividas pela C.CAÇ.3309, como foi um dos casos, a "epopeia trágico-marítima" de Nova Torres), ter sobrevivido naquele isolamento e em condições tão precárias, a avaliar pela foto aérea de MUIDINE (irónicamente construido em Pentágono) tirada de helicóptero, que retrata bem a sensação de abandono e de desprezo a que foram votados todos os soldados que por ali passaram. Por isso não é estranha a frase de um piloto de helicóptero que ali se deslocou pela primeira vez para levar o correio e víveres, quando do ar deparou com a violência daquele "degredo":
- Porra! é uma sensação muito estranha que se vive daqui de cima, tal é o isolamento a que esta malta foi sujeita:
- Estes gajos até pareçe que foram mandados para aqui de propósito para morrer! (...)
Carlos Vardasca
13 de Dezembro de 2007
Foto: Vista aérea do Aquartelamento de MUIDINE.