sexta-feira, 20 de julho de 2007

As nossas primeiras baixas


(...) O aquartelamento de Nangade ficava situado num planalto (Planalto dos Macondes) e, na época, procedia-se à construção de uma estação de tratamento de àguas que passariam a ser bombeadas do rio Litinguinha, que ficava num vale a cerca de três quilómetros de distância. Naquele dia, de manhã, era necessário levar trabalhadores agrícolas membros da população local, que iam trabalhar nas machambas situadas junto àquele rio, e o Victor (Didiá) ofereceu-se para ser ele o condutor de serviço. Pelo caminho, encontrou o Sousa (Básico) também da Companhia de Caçadores 3309 que acabara de sair de reforço onde estivera toda a noite, convidando-o para ir com ele ao que este acedeu de imediato embora estivesse com mais vontade de se ir deitar.

- Anda daí "Básico", faz-me lá companhia: - nós não demoramos nada e voltamos num instante.

Depois de os trabalhadores agrícolas e um Furriel que estava adido ao Batalhão de Artilharia 2918 entrarem para o Unimog 404, O Victor inicou o percurso na picada com uma descida muito íngreme logo à saída de Nangade e que dava acesso ao vale, não se prevendo que algo de trágico estaria para acontecer.

Depois de terem percorrido cerca de dois quilómetros e meio e prestes a chegar ao posto avançado situado junto ao rio, dá-se uma violenta explosão de uma mina anti-carro altamente reforçada, causando a morte de 8 trabalhadores agrícolas, ficando cinco deles gravemente feridos, assim como o Furriel que também seguia na viatura que sofreu ferimentos ligeiros. O Sousa, teve morte imediata, mas o Victor, com a violência da explosão ainda foi cuspido para fora da viatura indo cair no mato sem qualquer ferimento, sendo no entanto esmagado pelo Unimog 404 que, devido ao impacto de explosão, se elevou no ar e foi precisamente cair em cima dele, esmagando-o, provocando a sua morte.

A Companhia de Caçadores 3309 estava em Cabo Delgado à apenas cinco meses quando no dia 20 de Julho de 1971 sofreu logo aqueles duas baixas de uma forma tão trágica. Em Tartibo, onde a C.CAÇ. 3309 estava estacionada, a notícia foi recebida com grande consternação e pesar, uma vez que tanto o Victor como o Sousa eram dois bons companheiros e amigos e, acima de tudo, dois excelentes camaradas (...)

Aqui fica a singela homenagem e um abraço solidário de quem sobreviveu.


Carlos Vardasca
20 de Julho de 2007


Nota: Na foto pode-se ver o estado em que ficou o Unimog 404 após a explosão, assim como as fotos do Victor e do Sousa.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

"Uma infância que nos foi roubada"


(...) Foi de facto um período "sem infância e sem brinquedos". Colocado desde os quatro anos de idade em sucessivos colégios onde senti que me tentavam moldar "o espírito e a alma", afinal dei naquilo que sou hoje; um "empertigado inconformista", rebelde, "ateu invertebrado" mas tremendamente solidário. Como fora possível que aquele menino de calções curtos, de meia alta até ao joelho e de fitinha no braço da 1ª comunhão, extremamente carente de afectos, viesse a ser a "personagem" que hoje sou? Foi ali mesmo, naquele colégio de freiras em S. João do Estoril que começou a ser moldada a minha personalidade, por paradoxo que seja. Tinha eu sete anos de idade (1956) quando de visita ao colégio, marinheiros da Marinha de Guerra dos EUA ali se deslocaram para ofertar brinquedos àquelas crianças à muito carentes do aconchego familiar. A mim calhou-me um pequeno comboio (uma máquina e duas carruagens) que rodava numa pequena linha em círculo. Até aí nunca tivera um brinquedo, e o fascínio que sentia dentro de mim moldou nos meus lábios vastos sorrisos e uma alegria imensa que parecia do tamanho do mundo. Só brinquei com o comboio naquele dia e inesplicávelmente nunca mais o vi, o mesmo acontecera com os restantes brinquedos que foram oferecidos aos outros meninos. No mês seguinte, deslocou-se ao colégio uma equipa de cinema françês para ali fazer uma curta metragem sobre os meninos "expulsos dos afectos", oferecendo também alguns brinquedos aos que participaram nas filmagens. A mim desta vez coube-me um boneco de pano onde se enfiava a mão e esta gesticulava a sua boca como se o boneco estivesse a falar. Com receio que o boneco tivesse a mesma sorte do comboio, refugiei-me na casa de banho, enquanto sentado na sanita brincava com aquele pedaço de pano que me "olhava desconfiado" e que me parecia querer dizer:

- "Estás triste! porquê? receias que me vá embora"? Cá fora, a Madre Superiora andava atarefada à procura dos meninos que participaram nas filmagens, dizendo que era para se juntarem e tirarem uma foto em grupo para os realizadores da película levarem consigo para o seu país. Ainda tentei ficar mais tempo na casa de banho escondido, mas os murros fortes (bastante agressivos até) que aquela religiosa dava nas portas obrigaram-me a sair.

Em vez da foto, todos os miúdos foram despojados (novamente) dos seus brinquedos para nunca mais os verem. Quando aquele boneco me foi arrancado dos braços senti uma angústia tão grande que até pareceu que me tinham "arrancado um pedaço de mim".

Mais tarde, num dos passeios que era hábito dar-mos pelas ruas de S. João do Estoril na companhia de algumas freiras, estupefactos, reparámos que numa das montras de um estabelecimento lá estavam os nossos brinquedos que nos tinham sido "arrancados sem jeito nem prosa". Por estranho que pareça, e no meio da nossa inoçência, até ficámos felizes por os termos encontrado de novo. Através do vidro da montra, cada um, referindo-se ao seu brinquedo, extasiava-se de alegria, embora sabendo que jamais o poderia ter de volta, mas também não compreendendo (na altura, mas hoje já está bastante claro) como, e porquê e de que jeito é que eles ali foram parar.

Foi de facto "um tempo que nos foi roubado" por aquelas devotas de deus que, associadas a outras por si efectuadas, acabaram por moldar (pelo menos a mim, e não sei se a todos os miúdos que estão na foto da época) um pedaço da minha personalidade (...)

Carlos Vardasca

19 de Julho de 2007

Nota: foto tirada aos sete anos de idade (1956), no dia da 1ª Comunhão em S.António do Estoril (eu sou, na fila em baixo, o último do lado direito).

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Nem sempre eramos camaradas!


...Havia necessidade de se realizar uma coluna de reabastecimento ao aquartelamento de Muidine, e o Furriel do 4º Grupo de Combate da C.CAÇ. 3309 andava atarefado a avisar os elementos do seu pelotão que a saída para o mato estava para breve:

- Malta, vamos lá a despachar que a coluna tem que sair pela fresquinha. Como o 1º Cabo António José Pereira ("Alentejano") se manteve imóvel deixando-se ficar sentado na cama, despertou a curiosidade do Furriel que lhe questionou:

- Epá "Alentejano", tu estás amarelo como o caraças, o que é que tens?

- Estou cá com uma camada de paludismo que nem me aguento nas pernas meu furriel.

Dotado de alguma compreensão, o Furriel ordenou que o "Alentejano" não fosse naquela operação, mas ficasse no quartel a restabelecer-se dos "frios e calores que lhe inundavam o corpo". A um canto da caserna, de especto rude, que fazia lembrar as rugosas montanhas transmontanas, um soldado dirige-se ao Furriel em termos pouco civilizados e remata com alguma violência verbal:

- Olhe lá meu Furriel! então esse "mouro" d'um cabrão não vai para o mato porquê?

- Então não vê que ele está apenas a fazer ronha só para não ir com a malta?

O "Alentejano", apercebendo-se da agressividade do companheiro de pelotão, dirigiu-se ao furriel dizendo-lhe que afinal contasse com ele, pois iria tomar um LM e logo ficaria bom, "só para que não restassem dúvidas e desconfianças sobre a sua pessoa" - disse. O Furriel ainda insistiu para que ele não fosse mas o "Alentejano", teimoso e ferido no seu orgulho insistiu também:

- Não meu Furriel! eu vou só para calar a boca àquele galego de merda.

A coluna acabara de sair pela madrugada do dia 05 de Julho de 1972. O dia estava lindíssimo e nada previa que algo viesse a acontecer, uma vez que o percurso iria ser efectuado pela picada nova que dava acesso ao aquartelamento de Muidine recentemente construído, bastante espaçosa, e onde se pensava ser difícil colocar qualquer mina, uma vez que a mesma era bastante frequentada pelas máquinas da Companhia de Engenharia 2736 que procedia à sua construção.
Pelo caminho e antes que as viaturas militares chegassem ao arame farpado, o "Alentejano" ainda avistou o seu mainato e lhe perguntou pela sua roupa que ele tinha levado para lavar:
- Ernesto! se a minha roupa estiver lavada, guarda-a na tua palhota que amanhã quando vier de Muidine eu vou lá buscá-la - ao que este respondeu:
- Ficar descansado que os teu roupa já estar lavado!
Ainda o pó levantado da última viatura não tinha pousado na terra batida da picada, aconteceu (o que era frequente nas outras picadas) o que ali parecia improvável.
Inesperadamente, ao quilómetro 9, a Berliet que seguia na frente accionou duas minas anti-carro (ficando outras duas por rebentar) causando à C.CAÇ. 3309 14 feridos, quatro deles com alguma gravidade, e um morto.
O morto em causa era o "Alentejano", que a falta de camaradagem (talvez inconsciente) atirou para o meio daquele fumo espesso, enegrecido, que se abateu sobre o seu camuflado que "ainda cheirava a suor brotado depois de um dia abrasador numa qualquer ceifa", e os seus olhos, bem abertos, "pareciam querer ainda olhar pela última vez e acariaciar as espigas ondulantes da sua seara que dizia crescer nos arredores de Aljustrel..."
Fez precisamente, no passado dia 05 de Julho 35 anos do seu falecimento, e aqui lhe presto a sentida homenagem, que os homens simples e justos são dela merecedores.
Carlos Vardasca
18 de Julho de 2007