quarta-feira, 18 de julho de 2007

Nem sempre eramos camaradas!


...Havia necessidade de se realizar uma coluna de reabastecimento ao aquartelamento de Muidine, e o Furriel do 4º Grupo de Combate da C.CAÇ. 3309 andava atarefado a avisar os elementos do seu pelotão que a saída para o mato estava para breve:

- Malta, vamos lá a despachar que a coluna tem que sair pela fresquinha. Como o 1º Cabo António José Pereira ("Alentejano") se manteve imóvel deixando-se ficar sentado na cama, despertou a curiosidade do Furriel que lhe questionou:

- Epá "Alentejano", tu estás amarelo como o caraças, o que é que tens?

- Estou cá com uma camada de paludismo que nem me aguento nas pernas meu furriel.

Dotado de alguma compreensão, o Furriel ordenou que o "Alentejano" não fosse naquela operação, mas ficasse no quartel a restabelecer-se dos "frios e calores que lhe inundavam o corpo". A um canto da caserna, de especto rude, que fazia lembrar as rugosas montanhas transmontanas, um soldado dirige-se ao Furriel em termos pouco civilizados e remata com alguma violência verbal:

- Olhe lá meu Furriel! então esse "mouro" d'um cabrão não vai para o mato porquê?

- Então não vê que ele está apenas a fazer ronha só para não ir com a malta?

O "Alentejano", apercebendo-se da agressividade do companheiro de pelotão, dirigiu-se ao furriel dizendo-lhe que afinal contasse com ele, pois iria tomar um LM e logo ficaria bom, "só para que não restassem dúvidas e desconfianças sobre a sua pessoa" - disse. O Furriel ainda insistiu para que ele não fosse mas o "Alentejano", teimoso e ferido no seu orgulho insistiu também:

- Não meu Furriel! eu vou só para calar a boca àquele galego de merda.

A coluna acabara de sair pela madrugada do dia 05 de Julho de 1972. O dia estava lindíssimo e nada previa que algo viesse a acontecer, uma vez que o percurso iria ser efectuado pela picada nova que dava acesso ao aquartelamento de Muidine recentemente construído, bastante espaçosa, e onde se pensava ser difícil colocar qualquer mina, uma vez que a mesma era bastante frequentada pelas máquinas da Companhia de Engenharia 2736 que procedia à sua construção.
Pelo caminho e antes que as viaturas militares chegassem ao arame farpado, o "Alentejano" ainda avistou o seu mainato e lhe perguntou pela sua roupa que ele tinha levado para lavar:
- Ernesto! se a minha roupa estiver lavada, guarda-a na tua palhota que amanhã quando vier de Muidine eu vou lá buscá-la - ao que este respondeu:
- Ficar descansado que os teu roupa já estar lavado!
Ainda o pó levantado da última viatura não tinha pousado na terra batida da picada, aconteceu (o que era frequente nas outras picadas) o que ali parecia improvável.
Inesperadamente, ao quilómetro 9, a Berliet que seguia na frente accionou duas minas anti-carro (ficando outras duas por rebentar) causando à C.CAÇ. 3309 14 feridos, quatro deles com alguma gravidade, e um morto.
O morto em causa era o "Alentejano", que a falta de camaradagem (talvez inconsciente) atirou para o meio daquele fumo espesso, enegrecido, que se abateu sobre o seu camuflado que "ainda cheirava a suor brotado depois de um dia abrasador numa qualquer ceifa", e os seus olhos, bem abertos, "pareciam querer ainda olhar pela última vez e acariaciar as espigas ondulantes da sua seara que dizia crescer nos arredores de Aljustrel..."
Fez precisamente, no passado dia 05 de Julho 35 anos do seu falecimento, e aqui lhe presto a sentida homenagem, que os homens simples e justos são dela merecedores.
Carlos Vardasca
18 de Julho de 2007

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