sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

"...Uma insólita prenda de natal"


(...) O Planalto dos Macondes era uma das zonas nevrálgicas no norte de Moçambique onde se fazia sentir a influência da FRELIMO, sendo por esse facto alvo de várias operações por parte de forças operacionais do exército, dos comandos assim como das tropas Paraquedistas.

Foi com esse objectivo que dois Grupos de Combate do Batalhão de Caçadores Paraquedistas 31 acamparam em Nangade durante algum tempo, cuja missão era serem helitransportados para atacar a Base BOANE da FRELIMO próximo do lago Lidede. Dessa força de Paraquedistas fazia parte o Duarte, meu velho amigo e companheiro de Santarém, que durante a sua permanência em Nangade me possibilitou usufruir do rancho melhorado que aquela força de paraquedistas proporcionava aos seus soldados, comparado com o incaracterístico "arroz com peixe" que nos era servido repetitivamente até à exaustão no rancho do Batalhão de Artilharia 2918 estacionado em Nangade. Nessa base da FRELIMO então destruída foram capturadas algumas armas e vários documentos considerados importantes, assim como algumas caixas com propaganda ideológica onde se encontravam vários exemplares do Tomo 1 das Obras Escolhidas de Mao Tsetung. Como em todas as operações, há sempre quem queira ficar com algum "troféu" para recordação, e o Duarte, sabendo das minhas convicções (que por acaso também as partilhava), sem que o comandante do seu grupo de combate se apercebesse (claro que não foi só ele) escondeu nos bolsos do camuflado alguns exemplares daquela obra, apesar das ordens em contrário do mesmo oficial, que ordenou que tudo o que fosse encontrado teria que ser entregue para averiguações. Estavamos na noite do dia 24 de Dezembro de 1971, e quando aquela força de Paraquedistas regressou da operação já com a noite a abater-se sobre o Aquartelamento, a primeira coisa que o Duarte fez, foi (antes de se deslocar para o seu acampamento) dirigir-se ao abrigo onde me encontrava e, acenando-me para que viesse ao seu encontro mas fora do abrigo, dizendo-me baixinho:

- Toma! - eu sei que isto não tem nada a ver com a época mas é a minha prenda de natal. Acrescentando:

- Envolvi-o num velho papel de jornal que encontrei no caminho para o encobrir, mas vais gostar:
- Só peço que não o abras à frente dessa malta toda pois nós nem sabemos em quem confiar.
A minha curiosidade fez com que, mesmo antes de chegar à caserna, rasgasse o papel de jornal onde aquela insólita oferta vinha envolta e (depois de me aperceber do que se tratava) para minha satisfação mas ao mesmo tempo preocupação, refugiei-me na caserna a folhear as páginas daquela obra que já eram naquela altura (embora em surdina) a minha fonte de inspiração ideológica.
Mais tarde, e ainda no mesmo Aquartelamento mas em outras circunstâncias que não interessa ainda descrever (mas que o farei em outra altura que considere adequada) foram-me oferecidos outros volumes da mesma obra que ainda hoje os guardo (apesar de já não me rever naquelas teorias) dentro do "baú das minhas memórias" e relacionadas com aquele conflito, para onde fui enviado "sem jeito nem prosa" (...)
Carlos Vardasca
22 de Dezembro de 2007
Foto: Exemplar do Tomo 1 das Obras Escolhidas de Mao Tsetung (edição em português) encontrado na Base BOANE da FRELIMO, próximo do Lago Lidede (Coord. 3931,9.1101) pelo Duarte, 1º Cabo Atirador do Batalhão de Paraquedistas 31.

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