sexta-feira, 21 de março de 2008

"... Sucumbiu à nossa ingratidão e teve um fim inglório"


(...) Não fosse a sua anterior utilidade, aquela caixa não nos despertaria tanta angústia apesar da sua "nova missão". Ali estava ela, inerte, pendurada no tronco da palmeira que servia também de pau de bandeira, sempre pronta a deixar-se esventrar, sempre indiferente a quem nela depositava as suas "lamurias" e outros tantos segredos, para serem lidos por alguém que deles necessitava como da sua própria existência.
Outrora fora um cunhete de munições onde repousaram granadas de morteiro 81mm, mas agora aquela caixa cumpria a missão de fazer de "Marco do Correio" do Aquartelamento de Nova Torres.
Era nela que os soldados da Companhia de Caçadores 3309 ali estacionados depositavam todas as esperanças em clarificar algumas incertezas forjadas pela distância ou diluídas pelas cheias do Rovuma; questionavam a ausência de notícias que começaram a escassear pela distância; tentavam dar algum alento a amores bastas vezes traído pela ausência, ou então jurar e reivindicar fidelidades a quem se prometera na hora da partida.
Aquela caixa, apesar da sua robustez (que talvez impressionasse os frágeis aerogramas nela depositados) era uma fiel confidente dos lamentos e das inquietações de todos quantos ali tentavam sobreviver, dando-lhes a confiança de que as várias confissões e incertezas ali depositadas seriam, lá longe, numa qualquer aldeia de xisto ou no rebuliço da urbanidade, desfeitas ou confirmadas e outras tantas mal resolvidas, algumas delas depois de serem vasculhadas pela PIDE, não fossem elas transportar nas entrelinhas pequenas revoltas ou alguma ingenuidade traduzida pelo descontentamento.
Embora confidente daqueles soldados durante vários meses, aquela pequena caixa agora sem qualquer utilidade, também ela sucumbiu sem nenhum lamento à nossa ingratidão e teve um fim inglório, tal como foi inglória a nossa presença naqueles "subúrbios do céu", deixada para traz quando o Aquartelamento foi abandonado e entregue à voracidade das águas barrentas do rio Rovuma (...)
Carlos Vardasca
21 de Março de 2008
Foto: "Marco do Correio" do Aquartelamento de Nova Torres, na fronteira com a Tanzânia nas margens do rio Rovuma. Moçambique 1971.

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