terça-feira, 6 de novembro de 2007

Nem me apetecia olhar para baixo ...


(...) Marcava no calendário o dia 03 de Novembro de 1972, quando o Nord Atlas se fez à pista do Aquartelamento de Nangade, para dar início à rendição de parte da Companhia de Caçadores 3309 para o Aquartelamento de Balama. A impaciência reinava na pista, pois todos nós estávamos bastante ansiosos por abandonar Nangade, e deixar para trás momentos de angústia e sofrimento. Dentro de cada um de nós partia também a imagem dos nossos companheiros que tombaram em combate, e a certeza de que a pátria jamais lhes seria grata. Eu fazia parte desse 1º escalão de rendição, dado que o resto da Companhia seguiria só no dia 13 do mesmo mês de coluna militar até Palma, Aquartelamento junto à costa banhada pelo Índico, para embarcar na Corveta "General Pereira D'Eça" no dia 21 de Novembro de 1972 rumo a Porto Amélia (Pemba). Junto à pista de terra batida e encostado a uma árvore, de mochila às costas e a G3 ao ombro como que a descansar "de sonos bastas vezes interrompidos", eu sentia-me como que "uma criança que sorri de felicidade", por ver tão perto a minha retirada daquele planalto de má memória. Finalmente o Nord Atlas estacionara na pista envolto numa poeira avermelhada, e a ansiedade apoderou-se de todos nós, desejando correr de imediato na sua direcção, penetrar na sua fuzelagem e de lá não sair mais. Antes do embarque vieram-me à memória imagens da minha infância, que me recordaram a imensa alegria quando me aproximava de um carroçel numa qualquer feira, desejoso de montar um dos seus cavalos de pau. Ali estava eu; antes criança e agora feito soldado, impaciente por entrar naquele avião como se fora um brinquedo, "e nele me aconchegar e ali adormecer".

Quando o Nord Atlas levantou voo e já sobrevoava a densa mata e o Aquartelamento de Nangade ia ficando mais longe, instintivamente, e contrariando a minha vontade pois prometera não fazer, olhei por uma das janelas e, num gesto simples e em jeito de homenagem, acenei na direcção do aglomerado de palhotas de telhado de colmo que ladeavam o Aquartelamento, parecendo ver nos seus alpendres alguns amigos da população com quem convivi e ali deixei, alguns deles (é a primeira vez que o digo públicamente) há muito que sabia lutarem em trincheiras opostas (...)
Carlos Vardasca
03 de Novembro de 2007
Foto 1: Embarque da C.CAÇ. 3309 no Nord Atlas em Nangade.
Foto 2: Aquartelamento e aldeamentos de Nangade.

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