terça-feira, 7 de abril de 2009

Os "ABORÍGENES" do Tartibo

Antes de a Companhia de Caçadores 3309 ocupar o Aquartelamento de Nova Torres, quem lá estava era a Companhia de Artilharia 2745 que, no âmbito da Operação Novo Rumo ocupou aquela área, muito próximo de uma base da FRELIMO entretanto abandonada e que se denominava Cantina Manica e Sofala, importante posto fronteiriço de infiltração dos guerrilheiros na zona de Cabo Delgado (coordenadas: 39º 51',5 Leste - 10º 52' Sul) e a quem a C.CAÇ 3309 foi render em 1 de Março de 1971.
Os momentos ali vividos foram deveras dramáticos tanto para a C.ART. 2745 assim como para a C.CAÇ. 3309, tendo em conta os testemunhos aqui relatados pelo ex-Capitão Jorge Duque daquela Companhia de Artilharia e retirados de um extenso documento que fazem parte das suas memórias, algumas delas vividas em conjunto com a chegada da C.CAÇ. 3309 àquele Aquartelamento.

" (...) O rio Rovuma subiu mais na noite de 10 de Janeiro de 1971, após a visita do Coronel Dinis, segundo Comandante do Sub-Sector de Mueda, na qual foi dada ordem peremptória de não abandonar aquele local.
O Aquartelamento ficou completamente submerso durante quatro meses; A C.ART. 2745 teve de se afastar uma centena de metros do leito normal do rio para evitar as derrocadas provocadas pela torrente; atarefou-se a colocar o material mais leve sobre as árvores; estabeleceu um novo posto de comando com o rádio e antenas sobre uma delas. A profundidade mínima na área do quartel, que apesar do pequeno ajustamento do dispositivo continuava localizado na proximidade das margens do rio era superior a 1,50 metros; na maioria dos locais não havia pé; a corrente era fortíssima e ruidosa; viam-se grandes árvores com animais sobre elas (aves, macacos etc) a serem arrastadas na corrente; o local de terra firme mais próximo de nós situava-se a mais de 7 quilómetros, na margem sul do rio Metumbué que, com a cheia, se unira ao Rovuma.
Apesar disso a C.ART. 2745 manteve sempre ligação com o Comando de Sub-Sector localizado em Nangade. O posto de Comando e o centro de comunicações continuou sempre operacional. Os abastecimentos da cantina foram distribuídos gratuitamente e equitativamente a todos os militares. Não houve acidentes pessoais por milagre; revelou-se de grande utilidade o facto de, nos meses precedentes, todos os militares da Companhia haverem aprendido a nadar nos períodos do banho no rio Rovuma.
Os militares organizados em equipas tácticas de 5 elementos passaram a viver em cima das árvores; esses árvores foram seleccionadas especificamente para o efeito pelo comandante de companhia, de acordo com critérios tácticos, de conforto e de segurança; algumas das árvores não resistiram à torrente e foram arrastadas pelas águas, mas isso não aconteceu com nenhuma das que estavam ocupadas pelos militares; cada militar recebeu uma dotação reforçada de munições, medicamentos e outros abastecimentos de emergência; as armas pesadas e equipamentos colectivos foram distribuídos pelas equipas das árvores; a reserva de abastecimentos (munições, medicamentos e rações de combate) foi metida nos 4 botes de borracha disponíveis; a ligação entre os elementos da Companhia fazia-se a nado sobre colchões de borracha, tal como na praia; as viaturas foram amarradas a coqueiros para não serem arrastadas pela torrente; apesar disso muitos artigos foram arrastados pelas águas; por exemplo os bidões de combustível apareceram meses depois nas praias da zona de Palma, após um percurso de quase duas centenas de quilómetros.
Também houve alguns sustos com crocodilos, que, felizmente apenas queriam sobreviver como nós.
Neste período a Companhia alimentou-se a rações de combate e a pacotes de leite que eram lançados de helicóptero para a água, obrigando os militares a autênticas pescarias dos abastecimentos que ficavam a flutuar e se iam deslocando na corrente.
Dormia-se em cobertores presos aos ramos das árvores com arames.
Entretanto parte de um Grupo de Combate da C.ART. 2745 estava destacado em Nangade pois na altura das cheias estava em missão de escolta na estrada Nangade-Palma.
Imagine-se o espectáculo que seria quem passasse por perto de avião ou helicóptero na savana e deparar-se com um conjunto de árvores com cerca de 100 homens instalados nos ramos, quais frutos exóticos ou aborígenes frutívoros (...)
Jorge Fernando Duque
Coronel de Artilharia
Comandante do CIAAC-Cascais
Julho de 2007

In "A Companhia de Artilharia 2745 em Moçambique", páginas 10 e 11, Julho de 2007 de Coronel Jorge Fernando Duque, actual Comandante do CIAAC-Cascais, ex-Capitão de Artilharia NM 50530311 da Companhia de Artilharia 2745, em missão em Moçambique de 23 de Julho de 1970 a 08 de Setembro de 1972.
Foto1: O Capitão Jorge Duque (de pé, o terceiro a contar da esquerda) com outros oficiais de C.ART. 2745 na companhia de jornalistas no dia da chegada daquela Companhia a Nova Torres. Moçambique, 05 de Setembro de 1970. (em destaque foto actual do ex-capitão Duque)
Fotos 2 e 3: Retirada da Companhia de Artilharia 2745 do Aquartelamento de Nova Torres devido às cheias resultantes da junção das águas dos rios Metumbué e Rovuma. Moçambique, 1971.
Foto 4: Aspecto do Aquartelamento de Nova Torres parcialmente destruído e totalmente alagado. Moçambique, 1971.

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