(...) Não sei porquê, lembrei-me do Morais. Acabado de chegar a Nangade, em rendição individual em substituição de um soldado da CCS do Batalhão ali estacionado e falecido em combate, meio perdido e sem conhecer ninguém, Morais refugiava-se todas as noites no abrigo feito "tasca" e ali tentava estabelecer novas amizades. De aspecto meio rude e um pouco envergonhado, levava a "Laurentina" (1) para fora do abrigo e ali se saciava, sem contudo conseguir estabelecer qualquer conversação. Um dia, e porque estranhei aquele comportamento, afastei-me dos meus camaradas da Companhia e fui ter com ele fora do abrigo, forçando um diálogo que ainda hoje não me arrependo de o ter iniciado. Morais não sabia ler nem escrever, e contou-me a sua angústia por o terem enviado para tão longe, e logo deixara na terra a sua mulher grávida de seis meses. A partir daquele momento ficámos amigos e, percebendo o porquê de tanto sofrimento, ofereci-me para lhe escrever as suas cartas e ler as que viessem da "Metrópole". Foi de facto uma experiência muito gratificante que passei na guerra colonial, principalmente quando lhe li a carta que lhe anunciava o nascimento do seu filho e observei a felicidade espelhada no seu rosto. Cada vez que chegava o helicóptero com o correio, ele corria à minha procura para lhe ler aquelas minúsculas letritas (como era hábito dizer) e, quando sabia que eu estava no mato envolvido em colunas de reabastecimento, ele guardava as cartas (preferindo não as dar a ler a mais ninguém) até que eu regressasse ao aquartelamento. Por várias vezes aconteceu, tendo ele recebido correspondência da sua Albertina e ter que ir no mesmo dia para o mato integrado no seu Grupo de Combate, eu apenas tinha tempo de lhe ler as cartas, ao que ele me dizia, depois de me ter dado algumas sugestões para a resposta:
- Olha Braz, tu lês a carta e respondes mediante aquilo que eu te disse, mas quanto às mariquiçes (como costumava dizer em relação aos aspectos mais afectivos) fica ao sabor da tua imaginação. Quando regressava do mato e eu lhe lia aquilo que escrevera para ser enviado no helicóptero da tarde, ele dizia fascinado:
- Epá Braz, isto está mesmo bonito: - até parece que ela é que é a tua mulher.
Um dia lembrei-me de lhe dizer porque é que não ia aprender a ler e a escrever, pois um alferes do Batalhão tinha transformado uma pequena palhota em escola, e ali dava aulas aos miúdos da população nativa. Muito envergonhado disse-me:
- Eu! para o meio dos pretos aprender a ler? - Que vergonha.
Morais tinha como opinião de que os miúdos da escola eram inferiores a ele devido à cor da pele e, por isso (debaixo de um sentimento que exibia uma falsa superioridade) recusava-se a dar o primeiro passo, embora sentisse essa necessidade. Sem o querer ofender, decidi "ferir" o seu orgulho dizendo-lhe:
- Superior tu? - Eles é que são superiores a ti porque sabem duas línguas (a portuguesa e o seu dialecto local) e tu apenas sabes a tua e mal, e não a sabes escrever nem a ler:
Foi "remédio santo". No dia seguinte e todos os outros que ia tendo disponibilidade, lá estava ele à porta da palhota (agora escola), junto com outros soldados que também decidiram aprender as primeiras letras, exibindo os livros que nunca teve e que o trabalho árduo do campo não os deixou ler.
O Morais acabou a sua Comissão primeiro que eu e veio mais cedo para a "Metrópole" e, para meu espanto e quando a minha Companhia estava a fazer o espólio no RAL 1 em Lisboa, alguém me toca no ombro e me diz:
- Então amigo, ainda bem que também regressaste! Era o Morais que, sabendo que a minha Companhia chegava a Lisboa naquele dia, se deslocou de Vilar dos Ossos para me cumprimentar, sem contudo não perder a oportunidade de me deixar um pouco envergonhado, virando-se para a mulher dizendo-lhe:
- Olha Albertina, era aqui o Braz que te escrevia as cartas: - acrescentando:
- Foi ele o teu "namorado" enquanto eu estive lá na guerra. Ao que Albertina respondeu de uma forma tão singela e empregnada de ruralidade:
- Obrigado senhor, por me ter ajudado a ser tão feliz durante a ausência do meu Morais.
Actualmente, e por ter estudado afincadamente desde que chegara da guerra, Morais é um médico com algum prestígio naquelas pequenas aldeias mais recônditas da Freguesia onde habita, pois ali se desloca com uma "assiduidade militante" já muito rara entre os da sua profissão, conduzindo um velho Opel por caminhos onde o desenvolvimento tarda em chegar, recebendo por vezes em troca alguns parcos haveres arrancados à terra por gente "já gasta de tanto cansaço" (...)
Carlos Vardasca
05 de Janeiro de 2008
(1) Marca de cerveja de Moçambique.
Foto: Coluna de reabastecimento na picada entre Pundanhar e Nangade, vendo-se o Morais sentado ao lado direito no pára-brisas da segunda Berliet.