quinta-feira, 12 de março de 2009
quarta-feira, 11 de março de 2009
O Lobo e o Guerrilheiro
(...) Em África, no período colonial e nos aldeamentos mais recônditos de Moçambique, quem tinha uma motorizada já gozava (mais que não fosse aparente) de um certo estatuto social em relação aos que possuíam apenas uma bicicleta, assim como aos restantes que nada tinham como meio de transporte.
Em Nangade[1], o “Bazuca”, mainato[2] que prestava serviços na oficina de mecânica da Companhia de Caçadores 3309, possuía uma Suzuky já um pouco desconjuntada e sempre com o depósito vazio, mas que, das raras vezes que se passeava com ela, lhe fazia rasgar um largo sorriso que deixava ver ao longe a sua dentição de um branco tão branco, que contrastava com a sua pele preta, mas muito preta, como gostava de sublinhar e que dizia exibir com orgulho.
Desde que o Lobo[3] chegou a Nangade e o “Bazuca” passou a prestar serviço nas oficinas da Companhia de Caçadores 3309, estabeleceu-se entre eles um contrato deveras desvantajoso para o “Bazuca”, ao qual teve que se submeter pois de outra forma não teria acesso às contrapartidas que lhe eram propostas:
— Olha lá oh “Bazuca”! — disse o Lobo com aquela pose de ocupante com que a maioria dos soldados se dirigiam aos nativos:
— Vamos combinar uma coisa — enquanto o “Bazuca” ouvia meio desconfiado:
— Eu passo a arranjar gasolina para a moto, mas ando com ela durante o dia e tu só andas com ela à noite ... está combinado?
Sabendo das facilidades e das formas como se obter combustível por parte dos soldados daquela especialidade, o “Bazuca” não teve outro remédio senão aceitar embora um pouco descontente com o negócio, aproveitando no entanto para retirar alguns dividendos do mesmo:
— Eh nosso sordado! Se mesmo nos dia tu não andar, eu poder andar nos moto pá?
O Lobo, depois de achar tanta graça àquele português tão desarticulado, respondeu-lhe:
— Está bem “Bazuca”, eu estava a brincar, mas desde que não gastes toda a gasolina.
Como passou a ser frequente, o Lobo dirigia-se até à pista de aterragem de terra batida e aí acelerava inadvertidamente até ao seu final, tendo sido avisado por várias vezes do perigo que corria, tendo em conta que a mesma era circundada por uma densa mata podendo ser alvo de uma emboscada por parte da FRELIMO.
Numa das vezes que o fez, ao chegar ao final da pista e já a acelerar de regresso ao Aquartelamento, sai repentinamente da mata um guerrilheiro da FRELIMO que lhe pede boleia até Nangade, ao que o Lobo, sem se aperceber de quem se tratava nem da Kalasnhikov que o mesmo trazia a tiracolo e pensando ser um Machambeiro[4] vindo das suas lides, lhe disse:
— Vai a pé preto d’um cabrão — continuando a toda a velocidade sem se ter dado conta do que estava a ocorrer naquele momento.
Depois de chegar à oficina e de ter ajudado os outros companheiros de especialidade a montar um motor numa Berliet, foi-se apercebendo da algazarra que se ouvia lá para os lados do Posto Administrativo de Nangade, assim como da correria desordenada que muitos soldados e oficiais faziam naquela direcção.
Quando o Lobo chegou ao local, já ali se havia concentrado uma multidão oriunda dos aldeamentos Macua e Maconde, assim como alguns oficiais da Companhia de Artilharia 2918 e o seu comandante Tenente Coronel Vasconcelos Porto, que se fazia acompanhar (como já vinha sendo hábito) por um agente da PIDE/DGS[5] que tomavam conta da ocorrência.
Depois de se ter apercebido do que realmente tinha acontecido, ao Lobo apenas restou uma ligeira sensação de que a história lhe teria passado um pouco ao lado e nela ser reconhecido, se não tivesse recusado a boleia àquele desconhecido no final da pista.
Era de facto um guerrilheiro da FRELIMO que se entregava às nossas tropas com a sua Kalashnikov e alguma documentação, o que contribuiu para a identificação de alguns guerrilheiros que viviam infiltrados num dos aldeamentos e à localização de algumas das suas bases no interior da mata.
— Estás a ver meu alentejano de merda! — se tivesses dado boleia àquele turra[6] eras tu que levavas os louvores e agora eras um herói da pátria! — disse o “Garina”[7] rindo-se da forma tão despreocupada como o camarada de armas lidou com a situação — ao que o Lobo respondeu:
— Oh pá, eu quero lá saber disso! — Eu quase que nem olhei para ele quando o gajo saiu da mata: continuando, com o seu jeito característico bem untado de sotaque de Vila Viçosa:
— Eu cá só me sinto herói quando estou a emborcar “Laurentinas” e 2M[8], ou quando a proa do Niassa me levar a entrar na barra em Lisboa deixando para traz o farol do Bugio e, lá do alto meu monte, não avistar nenhum “Chico lateiro” que me faça lembrar este tempo de merda que aqui perdi (...)
Carlos Vardasca
11 de Março de 2009
[1] Aquartelamento situado no Planalto dos Macondes, no norte de Moçambique, próximo do rio Rovuma e da fronteira com a Tanzânia.
[2] Lavandeiro, ou membro da população que prestava outros serviços às tropas ali estacionadas.
[3] Joaquim António Aleixo Lobo, Soldado Mecânico Auto NM 00917070 da Companhia de Caçadores 3309
[4] Trabalhador agrícola.
[5] Polícia Política do Estado Novo.
[6] Adjectivo atribuído pelas nossas tropas aos guerrilheiros da FRELIMO.
[7] Alcunha do Alfredo Bernardino Pereira, Soldado Condutor Auto Rodas, NM 15407070 da Companhia de Caçadores 3309.
[8] Marcas de cerveja de Moçambique.
Em Nangade[1], o “Bazuca”, mainato[2] que prestava serviços na oficina de mecânica da Companhia de Caçadores 3309, possuía uma Suzuky já um pouco desconjuntada e sempre com o depósito vazio, mas que, das raras vezes que se passeava com ela, lhe fazia rasgar um largo sorriso que deixava ver ao longe a sua dentição de um branco tão branco, que contrastava com a sua pele preta, mas muito preta, como gostava de sublinhar e que dizia exibir com orgulho.
Desde que o Lobo[3] chegou a Nangade e o “Bazuca” passou a prestar serviço nas oficinas da Companhia de Caçadores 3309, estabeleceu-se entre eles um contrato deveras desvantajoso para o “Bazuca”, ao qual teve que se submeter pois de outra forma não teria acesso às contrapartidas que lhe eram propostas:
— Olha lá oh “Bazuca”! — disse o Lobo com aquela pose de ocupante com que a maioria dos soldados se dirigiam aos nativos:
— Vamos combinar uma coisa — enquanto o “Bazuca” ouvia meio desconfiado:
— Eu passo a arranjar gasolina para a moto, mas ando com ela durante o dia e tu só andas com ela à noite ... está combinado?
Sabendo das facilidades e das formas como se obter combustível por parte dos soldados daquela especialidade, o “Bazuca” não teve outro remédio senão aceitar embora um pouco descontente com o negócio, aproveitando no entanto para retirar alguns dividendos do mesmo:
— Eh nosso sordado! Se mesmo nos dia tu não andar, eu poder andar nos moto pá?
O Lobo, depois de achar tanta graça àquele português tão desarticulado, respondeu-lhe:
— Está bem “Bazuca”, eu estava a brincar, mas desde que não gastes toda a gasolina.
Como passou a ser frequente, o Lobo dirigia-se até à pista de aterragem de terra batida e aí acelerava inadvertidamente até ao seu final, tendo sido avisado por várias vezes do perigo que corria, tendo em conta que a mesma era circundada por uma densa mata podendo ser alvo de uma emboscada por parte da FRELIMO.
Numa das vezes que o fez, ao chegar ao final da pista e já a acelerar de regresso ao Aquartelamento, sai repentinamente da mata um guerrilheiro da FRELIMO que lhe pede boleia até Nangade, ao que o Lobo, sem se aperceber de quem se tratava nem da Kalasnhikov que o mesmo trazia a tiracolo e pensando ser um Machambeiro[4] vindo das suas lides, lhe disse:
— Vai a pé preto d’um cabrão — continuando a toda a velocidade sem se ter dado conta do que estava a ocorrer naquele momento.
Depois de chegar à oficina e de ter ajudado os outros companheiros de especialidade a montar um motor numa Berliet, foi-se apercebendo da algazarra que se ouvia lá para os lados do Posto Administrativo de Nangade, assim como da correria desordenada que muitos soldados e oficiais faziam naquela direcção.
Quando o Lobo chegou ao local, já ali se havia concentrado uma multidão oriunda dos aldeamentos Macua e Maconde, assim como alguns oficiais da Companhia de Artilharia 2918 e o seu comandante Tenente Coronel Vasconcelos Porto, que se fazia acompanhar (como já vinha sendo hábito) por um agente da PIDE/DGS[5] que tomavam conta da ocorrência.
Depois de se ter apercebido do que realmente tinha acontecido, ao Lobo apenas restou uma ligeira sensação de que a história lhe teria passado um pouco ao lado e nela ser reconhecido, se não tivesse recusado a boleia àquele desconhecido no final da pista.
Era de facto um guerrilheiro da FRELIMO que se entregava às nossas tropas com a sua Kalashnikov e alguma documentação, o que contribuiu para a identificação de alguns guerrilheiros que viviam infiltrados num dos aldeamentos e à localização de algumas das suas bases no interior da mata.
— Estás a ver meu alentejano de merda! — se tivesses dado boleia àquele turra[6] eras tu que levavas os louvores e agora eras um herói da pátria! — disse o “Garina”[7] rindo-se da forma tão despreocupada como o camarada de armas lidou com a situação — ao que o Lobo respondeu:
— Oh pá, eu quero lá saber disso! — Eu quase que nem olhei para ele quando o gajo saiu da mata: continuando, com o seu jeito característico bem untado de sotaque de Vila Viçosa:
— Eu cá só me sinto herói quando estou a emborcar “Laurentinas” e 2M[8], ou quando a proa do Niassa me levar a entrar na barra em Lisboa deixando para traz o farol do Bugio e, lá do alto meu monte, não avistar nenhum “Chico lateiro” que me faça lembrar este tempo de merda que aqui perdi (...)
Carlos Vardasca
11 de Março de 2009
[1] Aquartelamento situado no Planalto dos Macondes, no norte de Moçambique, próximo do rio Rovuma e da fronteira com a Tanzânia.
[2] Lavandeiro, ou membro da população que prestava outros serviços às tropas ali estacionadas.
[3] Joaquim António Aleixo Lobo, Soldado Mecânico Auto NM 00917070 da Companhia de Caçadores 3309
[4] Trabalhador agrícola.
[5] Polícia Política do Estado Novo.
[6] Adjectivo atribuído pelas nossas tropas aos guerrilheiros da FRELIMO.
[7] Alcunha do Alfredo Bernardino Pereira, Soldado Condutor Auto Rodas, NM 15407070 da Companhia de Caçadores 3309.
[8] Marcas de cerveja de Moçambique.
Foto 1: O Soldado Lobo quando escrevia à família no Aquartelamento de Tartibo. Moçambique 1972.
Foto 2: O lobo no XIX Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309 realizado no passado dia 07 de Março de 2009 em Vila Viçosa (O Lobo está a abrir a garrafa de champanhe enquanto o ex- Capitão Hélio Moreira se atarefa no acto de partir o bolo de aniversário.
in: "Onde o sol castiga mais". Crónicas de guerra 1970-1973, páginas 18, 19 e 20. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2005
segunda-feira, 9 de março de 2009
Foi uma festa em Vila Viçosa
Foi num ambiente de amizade, de forte camaradagem e espírito de confraternização que se realizou em Vila Viçosa, no passado dia 07 de Março o XIX Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309.
Foi bom reencontrar os companheiros com quem convivemos durante cerca de dois anos, onde suportámos o isolamento nos Aquartelamentos de Nova Torres e de Tartibo; com quem partilhámos a água que nos restava do cantil para saciar gargantas secas pelas longas caminhadas que nos levavam até à exaustão, assim como também partilhámos a mesma angústia pela "partida numa viagem sem regresso" dos nossos companheiros tombados em combate.
Em homenagem a todos eles e também aos que já não estão entre nós e que faleceram após o nosso regresso, foi observado solenemente um minuto de silêncio, seguido do hino nacional cantado em uníssono por todos os presentes.
Como seria de esperar e devido à crise, este ano assistiu-se a uma relativa redução nas presenças, o que é perfeitamente compreensível, se tivermos em conta as dificuldades com que vivem a maioria dos ex-combatentes (alguns deles com reformas de miséria) o que influenciou de facto que não se repetisse o número de presenças idêntico ao dos últimos anos.
Apesar deste facto que é perfeitamente compreensível para todos nós dado que o vivemos no nosso dia a dia, foi no entanto em ambiente de festa, após 36 anos do nosso regresso, que se recordaram velhas histórias; se fortaleceram os laços de amizade forjados nas densas matas de Cabo Delgado; nas extensas picadas que serpenteavam o Planalto dos Macondes onde o perigo espreitava a cada momento, ou nos exíguos aquartelamentos onde a precariedade relacionada com a sobrevivência humana (bem delineada pelos senhores da guerra do momento) foi levada aos limites, onde nos sobrou uma ligeira sensação de que "nos tinham enviado propositadamente para ali para morrermos".
Tombado o regime e com ele "todos os que comiam da mesma gamela", eis que passados 36 anos continuamos a responder à chamada, com a perfeita convicção (sem saudosismos balofos nem falsos heroísmos triunfalistas) em não esquecermos nem deixar rasgar estas páginas da nossa história que fazem parte da nossa memória colectiva, em homenagem a todos quantos tombaram naquele conflito de má memória que foi a Guerra Colonial.
Para o ano havemos de voltar. Seja em S. João da Madeira ou Bragança, lá nos encontraremos para repetirmos os mesmos abraços, que serão decerto extensivos a todos os que não poderem responder à chamada e "aos que sabemos há muito estarem ausentes".
Carlos Vardasca
09 de Março de 2009
Nota: De salientar a excelente oferta feita a todos os ex-combatentes da C.CAÇ. 3309 presentes, de um relógio de parede com o símbolo do Batalhão de Caçadores 3834 por parte da Junta de Freguesia de Conceição (Vila Viçosa).
Foto 1: Foto do grupo de ex-combatentes da Companhia de Caçadores 3309 presentes no XIX Encontro Nacional em Vila Viçosa.
Foto 2: Faixa alusiva ao evento, colocada no interior do restaurante onde decorreu o almoço de confraternização.
Foto 3: Aspecto da sala onde decorreu o almoço de confraternização.
Foto 4: Bolo confeccionado para o evento.
Fotos 5 e 6: Momentos de convívio após a realização da missa na Igreja da Nª Sª da Conceição.
quinta-feira, 5 de março de 2009
Furriel, trouxeste água de Metrópole?
Amigo e Camarada Bráz,
Aqui te envio um pequeno contributo desses bons e maus tempos que passámos em terras de África.
Debruçado na amurada da corveta NRP "João Coutinho", a brisa fustigava-me o rosto naquela manhã de 23 de Fevereiro de 1971, quando olhava para as águas revoltas do Oceano Índico, cujas ondas eram continuamente sulcadas pela proa, num balancear contínuo a que nos habituáramos há 30 dias.
Os meus pensamentos variavam entre o passado recente no seio da família e dos amigos e um futuro incerto que o destino havia reservado, não só a mim, mas também a tantos outros que, comigo, seguiam no mesmo barco.
O nosso destino era a povoação de Palma, bem no norte de Moçambique, para daí serem percorridos 105 Km de picada até ao destino final: Nangade.
Dois dias de estadia e descanso em Porto Amélia (Pemba), haviam minimizado toda a ansiedade e incerteza do nosso destino. As suas praias e o sol tropical contribuíram para uma forte queimadura de costas que eu, inconscientemente, havia exposto, sabendo que, dois meses antes, estivera entulhado na neve da Serra da Olga – Chaves, onde havíamos tirado o I.A.O.
O balancear do barco deteve-se quando este entrou nas águas calmas da baía de Palma, ancorando a uma distância que me pareceu ter mais de um Km da praia onde desembarcaríamos, questionando-me eu como chegaríamos a terra. O meu espanto aumentou quando um batelão de chapa, quadrado, se aproximou da corveta rebocado a um pequeno barco a motor, e toda a C. Caç. 3309 se acomodou sobre ele com a tralha que lhe pertencia. Creio que a viagem até à praia demorou mais de meia hora, com a agravante de ter de parar a uns cem metros dela devido à baixa profundidade da maré vazia.
Chegámos à praia molhados, transportando cada qual o seu equipamento, perante um enorme alarido de alguns habitantes locais e das expressões eh checa…eh checa, proferidas por elementos dos dois pelotões da Companhia de Artilharia 2745, que nos iriam escoltar até Nangade.
No local designado, e, em condições precárias, cada qual se acomodou para passar a noite. Recordo-me que a passei no alpendre dum edifício, pertencente à Administração local, e que me pareceu ser uma escola.
Apesar da noite estar linda, não conseguia dormir. A realidade do presente e o destino incerto de cada um de nós, toldavam-me os pensamentos, para além da queimadura de costas não tolerar o chão duro onde estava deitado.
Embebido eu nos meus pensamentos, ouvi uma voz que, sussurrava:
— Furriel! Furriel! e, olhando para o lado, vi vir na minha direcção um soldado de cor pertencente à Companhia de Artilharia 2745. Sentei-me e perguntei-lhe o que queria. Ele, receoso e em voz baixa, perguntou-me:
— Furriel, trouxeste água da Metrópole? Perante tal pergunta fiquei intrigado, sem perceber que raio de água seria essa que ele queria – água da Metrópole? Instantaneamente ocorreu-me na ideia – Aguardente!
— Senta-te ao meu lado — disse-lhe eu, enquanto punha a mão à mala que me servia de travesseiro e, abrindo-a, tirei uma garrafa de Constantino (brandy) que um amigo me oferecera quando gozei as férias de mobilização nos Açores e que, por mera sorte, ainda ali se encontrava. Tirei-lhe a rolha, e, na falta de copos, levei-a à boca. Bebi um trago e entreguei-lha dizendo:
— Bebe. Após uma breve pausa levou-lha também à boca e bebeu uns bons tragos.
— Obrigado Furriel, disse-me ele levantando-se, enquanto murmurava:
— “Estamos acabando e vocês começando”.
— Senta-te mais um pouco, disse-lhe eu, levando novamente a garrafa à boca. Sentou-se, e, após uns dedos de conversa a meia voz e termos ingerido uma boa quantidade de brandy, levantou-se dizendo:
— Obrigado Furriel, vamos partir cedo e vou descansar.
Cambaleando, afastou-se sem eu lhe ter visto o rosto nem ele o meu. Foi quando me apercebi que apenas restava na garrafa um pouco de brandy. Acordei com o roncar das Berliets e Unimogs 404 anunciando o início duma picada que, após descanso duma noite em Pundanhar, terminaria em Nangade no dia seguinte. Era o início do destino da Companhia de Caçadores 3309.
Nordeste – Açores, 20 de Novembro de 2007
Norberto Manuel de Melo e Leite (O "Açoreano")
Ex- Furriel Miliciano NM 09168570 da Companhia de Caçadores 3309
Aqui te envio um pequeno contributo desses bons e maus tempos que passámos em terras de África.
Debruçado na amurada da corveta NRP "João Coutinho", a brisa fustigava-me o rosto naquela manhã de 23 de Fevereiro de 1971, quando olhava para as águas revoltas do Oceano Índico, cujas ondas eram continuamente sulcadas pela proa, num balancear contínuo a que nos habituáramos há 30 dias.
Os meus pensamentos variavam entre o passado recente no seio da família e dos amigos e um futuro incerto que o destino havia reservado, não só a mim, mas também a tantos outros que, comigo, seguiam no mesmo barco.
O nosso destino era a povoação de Palma, bem no norte de Moçambique, para daí serem percorridos 105 Km de picada até ao destino final: Nangade.
Dois dias de estadia e descanso em Porto Amélia (Pemba), haviam minimizado toda a ansiedade e incerteza do nosso destino. As suas praias e o sol tropical contribuíram para uma forte queimadura de costas que eu, inconscientemente, havia exposto, sabendo que, dois meses antes, estivera entulhado na neve da Serra da Olga – Chaves, onde havíamos tirado o I.A.O.
O balancear do barco deteve-se quando este entrou nas águas calmas da baía de Palma, ancorando a uma distância que me pareceu ter mais de um Km da praia onde desembarcaríamos, questionando-me eu como chegaríamos a terra. O meu espanto aumentou quando um batelão de chapa, quadrado, se aproximou da corveta rebocado a um pequeno barco a motor, e toda a C. Caç. 3309 se acomodou sobre ele com a tralha que lhe pertencia. Creio que a viagem até à praia demorou mais de meia hora, com a agravante de ter de parar a uns cem metros dela devido à baixa profundidade da maré vazia.
Chegámos à praia molhados, transportando cada qual o seu equipamento, perante um enorme alarido de alguns habitantes locais e das expressões eh checa…eh checa, proferidas por elementos dos dois pelotões da Companhia de Artilharia 2745, que nos iriam escoltar até Nangade.
No local designado, e, em condições precárias, cada qual se acomodou para passar a noite. Recordo-me que a passei no alpendre dum edifício, pertencente à Administração local, e que me pareceu ser uma escola.
Apesar da noite estar linda, não conseguia dormir. A realidade do presente e o destino incerto de cada um de nós, toldavam-me os pensamentos, para além da queimadura de costas não tolerar o chão duro onde estava deitado.
Embebido eu nos meus pensamentos, ouvi uma voz que, sussurrava:
— Furriel! Furriel! e, olhando para o lado, vi vir na minha direcção um soldado de cor pertencente à Companhia de Artilharia 2745. Sentei-me e perguntei-lhe o que queria. Ele, receoso e em voz baixa, perguntou-me:
— Furriel, trouxeste água da Metrópole? Perante tal pergunta fiquei intrigado, sem perceber que raio de água seria essa que ele queria – água da Metrópole? Instantaneamente ocorreu-me na ideia – Aguardente!
— Senta-te ao meu lado — disse-lhe eu, enquanto punha a mão à mala que me servia de travesseiro e, abrindo-a, tirei uma garrafa de Constantino (brandy) que um amigo me oferecera quando gozei as férias de mobilização nos Açores e que, por mera sorte, ainda ali se encontrava. Tirei-lhe a rolha, e, na falta de copos, levei-a à boca. Bebi um trago e entreguei-lha dizendo:
— Bebe. Após uma breve pausa levou-lha também à boca e bebeu uns bons tragos.
— Obrigado Furriel, disse-me ele levantando-se, enquanto murmurava:
— “Estamos acabando e vocês começando”.
— Senta-te mais um pouco, disse-lhe eu, levando novamente a garrafa à boca. Sentou-se, e, após uns dedos de conversa a meia voz e termos ingerido uma boa quantidade de brandy, levantou-se dizendo:
— Obrigado Furriel, vamos partir cedo e vou descansar.
Cambaleando, afastou-se sem eu lhe ter visto o rosto nem ele o meu. Foi quando me apercebi que apenas restava na garrafa um pouco de brandy. Acordei com o roncar das Berliets e Unimogs 404 anunciando o início duma picada que, após descanso duma noite em Pundanhar, terminaria em Nangade no dia seguinte. Era o início do destino da Companhia de Caçadores 3309.
Nordeste – Açores, 20 de Novembro de 2007
Norberto Manuel de Melo e Leite (O "Açoreano")
Ex- Furriel Miliciano NM 09168570 da Companhia de Caçadores 3309
Foto 1: O Furriel Leite junto do monumento em homenagem aos Combatentes de 1ª Grande Guerra 1914-1918, e em destaque uma foto sua actual. Ao fundo pode ver-se o edifício da messe de oficiais. Nangade 1971
Foto 2: O Furriel Leite na companhia do Furriel Barbudo (C.CAÇ. 3309) e um ex-guerrilheiro da FRELIMO (etnia Maconde), vulgarmente conhecido por "51". Aldeamento Maconde. Nangade 1972.
Foto 3: O Furriel Leite junto dos seus companheiros da 1ª Secção do 3º Grupo de Combate da Companhia de Caçadores 3309 no Aquartelamento de Tartibo. 1972
segunda-feira, 2 de março de 2009
XIX Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309
Vai realizar-se no próximo sábado, dia 07 de Março, na bela cidade de Vila Viçosa, o XIX Encontro Nacional da Companhia de Caçadores 3309, celebrando assim desta forma e em animado convívio, o 36º aniversário do seu regresso da Guerra Colonial (Moçambique 1971-1973)).
Mais uma vez iremos celebrar este dia em ambiente de festa, mas tendo sempre presente na nossa memória os nossos camaradas tombados em combate assim como os que já partiram após o nosso regresso.
Como nos anteriores Encontros Nacionais, será um imenso prazer reencontrar-mo-nos, mas sempre na expectativa de que apareça um ou outro "Checa", daqueles que, por variadíssimos motivos, tenham andado arredados destes momentos que têm contribuído para preservar e recordar um pedaço da nossa memória colectiva.
Um abraço a todos, até Vila Viçosa.
Carlos Vardasca
02 de Março de 2009
Nota: Se clicar em cima do programa e do cartaz poderá visualizar melhor o seu conteúdo.
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