quinta-feira, 5 de março de 2009

Furriel, trouxeste água de Metrópole?

Amigo e Camarada Bráz,
Aqui te envio um pequeno contributo desses bons e maus tempos que passámos em terras de África.
Debruçado na amurada da corveta NRP "João Coutinho", a brisa fustigava-me o rosto naquela manhã de 23 de Fevereiro de 1971, quando olhava para as águas revoltas do Oceano Índico, cujas ondas eram continuamente sulcadas pela proa, num balancear contínuo a que nos habituáramos há 30 dias.
Os meus pensamentos variavam entre o passado recente no seio da família e dos amigos e um futuro incerto que o destino havia reservado, não só a mim, mas também a tantos outros que, comigo, seguiam no mesmo barco.
O nosso destino era a povoação de Palma, bem no norte de Moçambique, para daí serem percorridos 105 Km de picada até ao destino final: Nangade.
Dois dias de estadia e descanso em Porto Amélia (Pemba), haviam minimizado toda a ansiedade e incerteza do nosso destino. As suas praias e o sol tropical contribuíram para uma forte queimadura de costas que eu, inconscientemente, havia exposto, sabendo que, dois meses antes, estivera entulhado na neve da Serra da Olga – Chaves, onde havíamos tirado o I.A.O.
O balancear do barco deteve-se quando este entrou nas águas calmas da baía de Palma, ancorando a uma distância que me pareceu ter mais de um Km da praia onde desembarcaríamos, questionando-me eu como chegaríamos a terra. O meu espanto aumentou quando um batelão de chapa, quadrado, se aproximou da corveta rebocado a um pequeno barco a motor, e toda a C. Caç. 3309 se acomodou sobre ele com a tralha que lhe pertencia. Creio que a viagem até à praia demorou mais de meia hora, com a agravante de ter de parar a uns cem metros dela devido à baixa profundidade da maré vazia.
Chegámos à praia molhados, transportando cada qual o seu equipamento, perante um enorme alarido de alguns habitantes locais e das expressões eh checa…eh checa, proferidas por elementos dos dois pelotões da Companhia de Artilharia 2745, que nos iriam escoltar até Nangade.
No local designado, e, em condições precárias, cada qual se acomodou para passar a noite. Recordo-me que a passei no alpendre dum edifício, pertencente à Administração local, e que me pareceu ser uma escola.
Apesar da noite estar linda, não conseguia dormir. A realidade do presente e o destino incerto de cada um de nós, toldavam-me os pensamentos, para além da queimadura de costas não tolerar o chão duro onde estava deitado.
Embebido eu nos meus pensamentos, ouvi uma voz que, sussurrava:
Furriel! Furriel! e, olhando para o lado, vi vir na minha direcção um soldado de cor pertencente à Companhia de Artilharia 2745. Sentei-me e perguntei-lhe o que queria. Ele, receoso e em voz baixa, perguntou-me:
Furriel, trouxeste água da Metrópole? Perante tal pergunta fiquei intrigado, sem perceber que raio de água seria essa que ele queria – água da Metrópole? Instantaneamente ocorreu-me na ideia – Aguardente!
Senta-te ao meu lado — disse-lhe eu, enquanto punha a mão à mala que me servia de travesseiro e, abrindo-a, tirei uma garrafa de Constantino (brandy) que um amigo me oferecera quando gozei as férias de mobilização nos Açores e que, por mera sorte, ainda ali se encontrava. Tirei-lhe a rolha, e, na falta de copos, levei-a à boca. Bebi um trago e entreguei-lha dizendo:
Bebe. Após uma breve pausa levou-lha também à boca e bebeu uns bons tragos.
Obrigado Furriel, disse-me ele levantando-se, enquanto murmurava:
“Estamos acabando e vocês começando”.
Senta-te mais um pouco, disse-lhe eu, levando novamente a garrafa à boca. Sentou-se, e, após uns dedos de conversa a meia voz e termos ingerido uma boa quantidade de brandy, levantou-se dizendo:
Obrigado Furriel, vamos partir cedo e vou descansar.
Cambaleando, afastou-se sem eu lhe ter visto o rosto nem ele o meu. Foi quando me apercebi que apenas restava na garrafa um pouco de brandy. Acordei com o roncar das Berliets e Unimogs 404 anunciando o início duma picada que, após descanso duma noite em Pundanhar, terminaria em Nangade no dia seguinte. Era o início do destino da Companhia de Caçadores 3309.

Nordeste – Açores, 20 de Novembro de 2007

Norberto Manuel de Melo e Leite (O "Açoreano")
Ex- Furriel Miliciano NM 09168570 da Companhia de Caçadores 3309


Foto 1: O Furriel Leite junto do monumento em homenagem aos Combatentes de 1ª Grande Guerra 1914-1918, e em destaque uma foto sua actual. Ao fundo pode ver-se o edifício da messe de oficiais. Nangade 1971

Foto 2: O Furriel Leite na companhia do Furriel Barbudo (C.CAÇ. 3309) e um ex-guerrilheiro da FRELIMO (etnia Maconde), vulgarmente conhecido por "51". Aldeamento Maconde. Nangade 1972.

Foto 3: O Furriel Leite junto dos seus companheiros da 1ª Secção do 3º Grupo de Combate da Companhia de Caçadores 3309 no Aquartelamento de Tartibo. 1972

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