(...) As palmeiras tombavam sobre o aquartelamento e o emaranhado de palhotas que se entrelaçavam por entre as tendas militares; a verdejante folhagem das bananeiras e a azáfama da população local que se misturava por entre os soldados que envergavam camuflados já esventrados pelo tempo, prisioneiros do arame farpado que lhes esventrava a liberdade e que rodeava todo o aquartelamento numa dualidade tão perversa, emprestava, apesar de tudo, àquela linha de defesa militar encostada a uma extensa lângua prenhe de vida animal, um cenário paradisíaco esquecido entre o arvoredo deslumbrante que deixava trespassar raios de sol tão brilhantes, mas também, a realidade cruel para quem participava numa guerra nos confins do inferno e convivia de braço dado com o isolamento.
Já com a escuridão a inundar todo o Aquartelamento, inesperadamente, e apesar de decorrer o final da estação seca, a noite caiu tempestuosa sobre Pundanhar, e os soldados que se tinham enroscado debaixo dos telhados de colmo das palhotas de adobe ou das viaturas militares e aí encontraram algum aconchego, assistiam, embrulhados em cobertores e nas capas de oleado, à forte chuvada e ao troar dos trovões que se abatiam sobre aquela frente de batalha.
Um forte clarão iluminou o Nabais que permanecia sentado do outro lado da rua debaixo do alpendre de uma palhota, sempre com a “canhota”[1] por perto e uma lata de “Laurentina” entre as pernas, parecendo mastigar um cigarro ou tentando mastigar outras tantas lembranças intragáveis.
- A merda do tempo e as recordações da minha aldeia não me deixam pregar olho; - disse Nabais que, apesar de estar sozinho continuava a gesticular termos gramaticais meio desarticulados, acompanhados de um verbalismo desconjuntado pelo álcool:
- Pretos d'um cabrão, que mal é que eu lhes fiz para estar agora a aturá-los?
Braz, que se mantinha acordado e deitado debaixo de uma Berliet no lado oposto, aproximou-se de Nabais atravessando a rua enlameada que os separava debaixo de forte chuvada, e respondeu-lhe como se a pergunta lhe tivesse sido dirigida, mas sem que antes não deixasse de lhe dar uma séria recomendação:
- Já viste Nabais, durante toda a tarde, desde que chegámos aqui a Pundanhar que ainda não paraste de beber?
- Se continuas a emborcar tanta cerveja, podes vir a ser prejudicado e a pagar caro essa forma como tentas afogar as tuas lamurias.
- Deixa-te de merdas Braz: - lá vens tu com os teus moralismos e o caralho da bebida: ripostou Nabais, acrescentando irritado:
- Eu nunca vou morrer pá. Um “guerrilheiro da Malcata” nunca morre.
Voltando ao motivo da conversa que o fez aproximar do companheiro, Braz sentou-se ao seu lado enroscado na manta e no dólmen, encostando a sua arma à “canhota” do Nabais.
- Está bem, eu não falo mais em bebida mas o que eu te queria dizer é que nenhum de nós (disse baixinho, certificando-se de que em seu redor apenas tinha por companhia aquela robusta árvore e alguns soldados que dormiam) fez mal a alguém para estar aqui, nem essa questão se coloca dessa forma.
- Repara bem nisto que te vou dizer:
- Por acaso gostavas que arrombassem a porta da tua casa e ficassem a viver dentro dela sem o teu consentimento? - argumentou Braz percebendo pelo semblante carregado do Nabais que este se apressava a responder parecendo ter despertado da embriaguês.
- Lá vens tu com essa treta da colonização e da libertação dos povos das colónias:
- Eu desde os meus tempos de escola que sempre ouvi dizer que estes territórios sempre foram nossos, e vens agora tu contrariar em dois minutos aquilo que eu aprendi nos bancos da escola, e que sempre tenho ouvido até agora aos meus vinte e dois anos.
- Sabes Nabais, na escola, contaram-te; e a mim também, claro, o lado errado da nossa história, e hoje estamos todos aqui longe da nossa família convencidos que estamos a lutar para salvar a pátria, enquanto os donos dos cafezais, das plantações de algodão, das prospecções de petróleo e das minas de diamantes se pavoneiam nas belas estâncias balneares a fornicarem com belas mulheres, enquanto nós estamos aqui a estoirar os nossos cornos, perdidos neste inferno, todos “cagados”, sempre à espera que a puta de uma bala se atravesse no nosso caminho, mas “felizes porque estamos aqui com a bênção do Cardeal Cerejeira” (...)
Já com a escuridão a inundar todo o Aquartelamento, inesperadamente, e apesar de decorrer o final da estação seca, a noite caiu tempestuosa sobre Pundanhar, e os soldados que se tinham enroscado debaixo dos telhados de colmo das palhotas de adobe ou das viaturas militares e aí encontraram algum aconchego, assistiam, embrulhados em cobertores e nas capas de oleado, à forte chuvada e ao troar dos trovões que se abatiam sobre aquela frente de batalha.
Um forte clarão iluminou o Nabais que permanecia sentado do outro lado da rua debaixo do alpendre de uma palhota, sempre com a “canhota”[1] por perto e uma lata de “Laurentina” entre as pernas, parecendo mastigar um cigarro ou tentando mastigar outras tantas lembranças intragáveis.
- A merda do tempo e as recordações da minha aldeia não me deixam pregar olho; - disse Nabais que, apesar de estar sozinho continuava a gesticular termos gramaticais meio desarticulados, acompanhados de um verbalismo desconjuntado pelo álcool:
- Pretos d'um cabrão, que mal é que eu lhes fiz para estar agora a aturá-los?
Braz, que se mantinha acordado e deitado debaixo de uma Berliet no lado oposto, aproximou-se de Nabais atravessando a rua enlameada que os separava debaixo de forte chuvada, e respondeu-lhe como se a pergunta lhe tivesse sido dirigida, mas sem que antes não deixasse de lhe dar uma séria recomendação:
- Já viste Nabais, durante toda a tarde, desde que chegámos aqui a Pundanhar que ainda não paraste de beber?
- Se continuas a emborcar tanta cerveja, podes vir a ser prejudicado e a pagar caro essa forma como tentas afogar as tuas lamurias.
- Deixa-te de merdas Braz: - lá vens tu com os teus moralismos e o caralho da bebida: ripostou Nabais, acrescentando irritado:
- Eu nunca vou morrer pá. Um “guerrilheiro da Malcata” nunca morre.
Voltando ao motivo da conversa que o fez aproximar do companheiro, Braz sentou-se ao seu lado enroscado na manta e no dólmen, encostando a sua arma à “canhota” do Nabais.
- Está bem, eu não falo mais em bebida mas o que eu te queria dizer é que nenhum de nós (disse baixinho, certificando-se de que em seu redor apenas tinha por companhia aquela robusta árvore e alguns soldados que dormiam) fez mal a alguém para estar aqui, nem essa questão se coloca dessa forma.
- Repara bem nisto que te vou dizer:
- Por acaso gostavas que arrombassem a porta da tua casa e ficassem a viver dentro dela sem o teu consentimento? - argumentou Braz percebendo pelo semblante carregado do Nabais que este se apressava a responder parecendo ter despertado da embriaguês.
- Lá vens tu com essa treta da colonização e da libertação dos povos das colónias:
- Eu desde os meus tempos de escola que sempre ouvi dizer que estes territórios sempre foram nossos, e vens agora tu contrariar em dois minutos aquilo que eu aprendi nos bancos da escola, e que sempre tenho ouvido até agora aos meus vinte e dois anos.
- Sabes Nabais, na escola, contaram-te; e a mim também, claro, o lado errado da nossa história, e hoje estamos todos aqui longe da nossa família convencidos que estamos a lutar para salvar a pátria, enquanto os donos dos cafezais, das plantações de algodão, das prospecções de petróleo e das minas de diamantes se pavoneiam nas belas estâncias balneares a fornicarem com belas mulheres, enquanto nós estamos aqui a estoirar os nossos cornos, perdidos neste inferno, todos “cagados”, sempre à espera que a puta de uma bala se atravesse no nosso caminho, mas “felizes porque estamos aqui com a bênção do Cardeal Cerejeira” (...)
in: "Fardados de Lama", páginas 69,70 e 71. Carlos Vardasca, Alhos Vedros 2008.
[1] Alusivo à espingarda automática G3.
[1] Alusivo à espingarda automática G3.
O João Luís dos Santos Nabais (2) (O "Guerrilheiro da Malcata", como gostava de se intitular quando recordava as suas aventuras por terras de Espanha no tráfico do café) depois de vários anos emigrado no Canadá onde tentou "endireitar a vida", veio a falecer em 07 de Maio de 2007 vitima da mesma doença que começou por ser "sua companheira" nos momentos em que a solidão se transformava em raiva, e o suor se misturava com o orvalho que se soltava do capim que ladeava a picada no itinerário Nangade-Pundanhar-Palma.
Em sua homenagem, aqui fica um abraço solidário de quem sobreviveu.
Carlos Vardasca
07 de Maio de 2009
(2) João Luís dos Santos Nabais, Soldado Condutor Auto Rodas NM15467570 da Companhia de Caçadores 3309
Foto 1: Após o rebentamento de uma mina anti-carro na viatura que conduzia. O Nabais está debaixo da Berliet, em tronco nu e de lenço preto ao pescoço, colaborando na preparação da viatura para ser rebocada. Em destaque, uma foto sua mais recente antes de falecer.
Foto 2: No Aquartelamento de Pundanhar com outros companheiros da C.CAÇ.3309 e da C.CAÇ. 2703 ali estacionada. O Nabais é o que está mais encoberto pelos companheiros e de bigode.
Foto 3: Em Nangade, na companhia dos seus companheiros condutores e mecânicos da C.CAÇ. 3309. O Nabais está em pé, de boina e de camuflado.
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