sábado, 19 de dezembro de 2009

"Uma linda missão em tempo de guerra" (Parte 1)

Nunca me tinha visto naquela situação. Apesar de tudo, foi uma experiência única que ainda hoje recordo como sendo a mais linda missão em que me envolvi em tempo de guerra, e que me deu a oportunidade de partilhar e receber uma extraordinária lição de vida.
Tudo aconteceu no ano de 1971, em plena Guerra Colonial e quando a Companhia de Caçadores 3309 de que eu fazia parte foi destacada para o aquartelamento de Nova Torres
[1], tendo alguns de nós por motivos operacionais ficado estacionados em Nangade[2].
Acabado de chegar em rendição individual para substituir um seu companheiro falecido em combate, o Morais, oriundo da aldeia de Vilar dos Ossos, chegara a Nangade num dos períodos mais conturbados do conflito colonial, e quando a FRELIMO desencadeava uma das ofensivas mais intensas após a Operação “NÓ GÓRDIO” e desde o início da sua luta armada de libertação do jugo colonial.
Sem saber ler nem escrever, e depois de algumas tentativas em se socorrer de quem o fizesse para se manter em contacto com a família (mas que por esse facto fora alvo de alguma chacota), o Morais
[3] refugiava-se no fundo do abrigo que nos servia de tasca e onde afogávamos as saudades da distância, sempre meio amargurado, emborcando copos de bagaço uns atrás dos outros, iluminado por uma luz muito ténue que os geradores a muito custo lá conseguiam emprestar àquele recanto, que também nos servia de refúgio quando o aquartelamento era atacado.
Estávamos em finais de Novembro do ano de 1971 e aproximava-se o mês do natal.
Ao descer para o abrigo, logo me dirigi ao pequeno balcão e me fiz acompanhar de uma Laurentina
[4] que me ajudou muitas vezes a saciar a secura das noites tropicais e, ao aperceber-me da presença do Morais num dos seus recantos, acerquei-me dele apesar de o conhecer muito recentemente, perguntando-lhe o porquê de tanta tristeza.
Encharcado em álcool o que tornava o seu vocabulário um pouco desconjuntado, cedo me apercebi dos motivos da sua angústia e de imediato me prontifiquei a erradica-la das suas preocupações, oferecendo-me para lhe escrever e ler a sua correspondência enquanto ele estivesse naquele aquartelamento.
Na noite seguinte, voltámo-nos a encontrar no abrigo (agora já decorado por um pequeno arbusto coberto por várias latas de cerveja vazias que substituíam as bolas de natal) e mesmo ali delineei os contornos do que viria a ser (na opinião do Morais, que me confessou mais tarde), uma das mais lindas prosas de natal que a sua jovem mulher (que deixara grávida de seis meses na Metrópole) já recebera.
Numa extraordinária experiência que muito gratificante se tornou para mim do ponto de vista humano, tornei-me, durante a permanência do Morais naquele aquartelamento seu confidente, lendo e escrevendo as cartas recebidas ou enviadas de e para os seus familiares, tendo especial significado os vários aerogramas
[5] que em seu nome escrevi para a sua mulher e as imensas cartas por mim lidas que esta lhe enviava.
Elaborado o rascunho, isolei-me na caserna e aí acertei os contornos finais do que tinha sido alinhavado no abrigo, imprimindo-lhe todo o vocabulário usual entre duas pessoas que se amavam e bruscamente separadas pela distância “sem jeito nem prosa”.
Sem nutrir qualquer simpatia pelo vocabulário litúrgico da época natalícia e sem dominar toda aquela fraseologia mercantilista e sazonal, esmerei-me no entanto em aplicá-la, socorrendo-me do que me fora inculcado aos oito anos de idade pelas freiras no colégio em S. João do Estoril, onde a minha relação com deus e com tudo o que se relacionasse com o foro religioso começou desde muito cedo a ser muito conflituosa, apesar de uma parte da minha educação ter sofrido aquele tipo de influência que ainda hoje considero ter-me sido imposta.
O helicóptero só vinha buscar o correio pelas onze horas da manhã e, mesmo ali junto da secretaria do seu Batalhão e “numa espécie de cerimónia que se assemelhava à largada de um pombo de correio” e antes de fechar o aerograma, fiz questão de lhe ler o que escrevera durante a noite com base no que fora acordado no fundo do abrigo, mas, claro, com algumas alterações que ajudaram a embelezar e a enriquecer o texto do ponto de vista sentimental e até mesmo religioso, o que foi do agrado do Morais, dado que desde criança se habituara às lamurias e ladaínhas do Pároco da sua aldeia.
Á medida que eu ia soletrando as breves linhas impressas pela minha SHEAFFER
[6] e que se acotovelavam no pequeno aerograma, os olhos do Morais não se descolavam dos meus lábios, insistindo para que voltasse a ler algumas das frases que considerava serem de uma beleza extrema, mas que o trabalho árduo do campo nunca permitiu que as aprendesse a exprimir.
Reparei sempre, no final da leitura de cada aerograma que lhe escrevia, que o seu rosto transpirava de alegria, exteriorizando uma certa fascinação pelo que acabara de ouvir.
― Porra Braz! Escreves tão bem! ― Quando a minha "miúda" receber este aerograma vai ficar tão feliz com as coisas lindas que escreveste:
― Até parece que és tu o marido dela
― Acrescentando, excessivamente emocionado:
― Como é que tu, que dizes não acreditar em deus nem nestas coisas do natal, e consegues escrever coisas tão lindas que até parece que andaste no seminário?
Foi de facto uma experiência muito gratificante e muito intensa do ponto de vista emocional, dado que em certos momentos cheguei a partilhar o calor afectivo trocado entre aquele companheiro e a sua jovem esposa, ao ponto de ambos termos por várias vezes chorado quando se tratava de responder ou ler algo mais pessoal e que mexesse bem fundo nos seus afectos.
De cada vez que o Morais recebia correspondência, lá vinha ele ter comigo sempre com o mesmo sorriso rasgado que transbordava de felicidade, mesmo que já tivesse recebido as cartas há alguns dias, ao que eu lhe dizia:
― Olha lá Morais! ― Então porque é que nestes dias que eu estive no mato não deste a ler a tua correspondência a outro soldado? ― Ao que ele respondia denotando alguma indignação, lembrando-se da chacota de que já fora alvo:
― Eu já não confio nessa malta; ― Eu não me importo de esperar mais um dia ou outro, mas as cartas lidas e escritas por ti têm outro sentido.
Quando na semana seguinte o helicóptero voltava ao aquartelamento de Nangade e no saco do correio trazia alguma carta da sua mulher, o Morais corria apressado de caserna em caserna à minha procura, por vezes perante a risota de alguns militares que presenciavam a sua azáfama e gracejavam em tom jocoso:
― Vai! ― Corre a contar-lhe os segredos da “tua Maria” e quando deres por ela já ele te roubou a tua miúda.
Indiferente aos gracejos, sentava-se ao meu lado debaixo de um cajueiro muito próximo do Obus 14
[7], olhando em redor certificando-se se mais ninguém estava presente, rasgando ele próprio uma das extremidades do envelope enquanto exteriorizava o seu contentamento:
― Olha! ― Pelo tipo de letra parece ser da minha Albertina.
Era deveras interessante vê-lo quase que a soletrar as frases que lhe ia lendo, como se as quisesse mastigar muito lentamente para lhe tomar bem o gosto.
Por vezes (e muito em particular uma das cartas que recebera naquele mês de natal de 1971) cheguei a ler a sua correspondência repetidas vezes e durante vários dias, tal era a necessidade do Morais em recordar os momentos de felicidade que aquelas cartas transportavam dentro de si (gabando excessivamente a minha paciência), dizendo-me por vezes, bastante emocionado e com algumas lágrimas a escorrerem-lhe pela face:
― Eu sei que não acreditas na existência de deus nem passas cartucho nenhum ao natal, mas olha amigo Braz:
― Deixa-me pelo menos e só por um bocadinho, “vender o meu peixe”:
Deus te pague ― Eu e a minha Albertina
[8] nem sabemos como te agradecer por nos teres proporcionado momentos tão felizes neste natal de 1971.

Carlos Vardasca
19 de Dezembro de 2009

[1] Aquartelamento das nossas tropas situado junto ao rio Rovuma, na fronteira de Moçambique com a Tanzânia.
[2] Aquartelamento situado no Planalto dos Macondes, a cerca de vinte quilómetros do rio Rovuma.
[3] Depois de ter acabado a sua comissão em Moçambique, o Morais dedicou-se aos estudos. Actualmente é um médico muito estimado pela sua simplicidade com que presta assistência nas aldeias vizinhas da sua terra, recebendo em troca, dos aldeãos mais carenciados, pequenos parcos haveres em produtos agrícolas como forma de pagamento das consultas que efectua.
[4] Marca de cerveja Moçambicana.
[5] Pequeno impresso distribuído pelo Movimento Nacional Feminino (MNF) que se enviava por correio aéreo, sem necessidade de sobrescrito ou qualquer custo para o seu envio, usado pelos militares destacados na Guiné, Angola e Moçambique durante a Guerra Colonial.
[6] Marca da minha esferográfica.
[7] Peça de artilharia pesada que fazia parte das defesas do aquartelamento.
[8] O Morais e a Albertina, depois de aquele ter concluído a sua comissão em Moçambique fortaleceram o seu casamento (que ainda hoje perdura) com o nascimento de mais dois filhos, para além daquele que nascera ainda o Morais estava a cumprir a sua comissão em Moçambique.

1 comentário:

Ferreira disse...

Por tudo isto ainda havia boas pessoas no meio da malta, mas era o Potugal de outros tempos. Eu também no Natal/71 estava a chegar a L.M. depois seguindo para Mueda.
Estas experiência são dignas de boa indole. Eu também fiz algumas boas acções equanto estive em Moçambique, que talvez vá contando, eu também estive num seminário da Luz, e, tive os meus conflitos, por isso meus tios me puseram a trabalhar como castigo, mas fiz o meu curso noturno,e a Faculdade, que depois a tropa deume um interregno, que acabei de partir para a Suisse e lá fui aquele que desejava ser.
Bem hajas Carlos
Teu amigo
A.Ferreira