Coroa de flores depositada na urna de Felisberto Costa, por antigos companheiros da ex-Companhia de Caçadores 3309 presentes no funeral.
Mensagem inscrita na coroa de flores
(...) Já à porta, parecendo transbordar uma anciedade que
parecia difícil de conter, evidenciando ao mesmo tempo uma ingenuidade
excessivamente infantil que evitava exteriorizar outras emoções há muito
contidas, prenhes de recordações dramáticas, Maria Nyamoro sorria agora,
sem esforço, enquanto corria de uma forma efusiva na direcção do jeep que
estacionava do lado de dentro da vedação de bambu que Maria Nyamoro
abrira e voltara a fechar, para que a viatura não fosse observada pela patrulha
do exército que regularmente fazia a ronda ao aldeamento. Com ele trazia alguns
sacos, repletos de géneros alimentícios que furtara dos mantimentos destinados
ao aquartelamento que fora buscar a Montepuêz, e que lhe custaram mais
tarde, uma acesa discussão com o furriel Costa
responsável pelo depósito de géneros da 3309.
- Braz, foste
tu que foste a Montepuêz no Unimog 404 fazer o reabastecimento do
aquartelamento?
- Fui,
porquê? ― Houve algum problema?
O furriel Costa fez uma pequena pausa, tentando disfarçar
um ligeiro sorriso que não conseguiu conter, acabando por soltar uma forte
gargalhada que transportava alguma ironia:
- Que ideia Braz! ―
claro que não houve problema nenhum!
- Apareces-me aqui no
quartel com as sacas de batatas e de arroz todas rotas; as caixas das latas
de conserva abertas e tudo o resto vandalizado, até parecendo que passou por
ali um forte vendaval, e ainda me perguntas se houve problemas com o
reabastecimento?
- Então! - És capaz de
me explicar a causa daquele roubo que diga-se de passagem, um pouco
seleccionado; - uns quilitos de batatas;
algumas latas de conserva; café, açúcar, arroz:
- Caramba, quem o fez
até parece que estava numa loja a abastecer-se para o mês:
- O que é que achas Braz? - E qual é a explicação que tens para
este assalto ao abastecimento do quartel que o capitão vai ficar fula quando
vier a saber?
- Sabes muito bem que
ele não te grama por causa dessas tuas ideias um pouco liberais, e vai ser uma
boa oportunidade para ele te dar uma bruta foda que ainda tens que cumprir mais
uns meses de comissão e, se possível, manda-te para uma zona onde “porrada é
mato”.
Apanhado de surpresa pela reacção do furriel e sem saber qual a
desculpa a dar, lembrou-se da que lhe veio à memória; a que lhe pareceu com
maior probabilidade de ser aceite.
Reparou que o furriel fazia um denunciado esforço para não
exteriorizar o mesmo sorriso inicial, cujo olhar, que denotava ser o
prolongamento do ligeiro rasgar dos lábios que pareciam adivinhar o destino das
mercadorias em falta, adivinhando qual a desculpa que estava a ser arquitectada
e que extravasava do olhar um pouco fragilizado do soldado Braz.
- Meu furriel! ― eu
penso que foi já no regresso a Balama;
- Como tenho um certo
receio de andar nestas matas sozinho apesar de saber nunca ter havido qualquer
ataque da FRELIMO nesta zona, mas, devido a esse mesmo receio e, para me
tranquilizar e me sentir um pouco acompanhado durante o trajecto, fui dando
boleia a elementos da população dos aldeamentos próximos que fui encontrando ao
longo da picada e, com a carroçaria do Unimog 404 repleta de gente faminta, foi
muito provável que, uma vez sentados em cima de tanta fartura a vandalizassem, para suprir algumas
necessidades alimentares que diariamente não encontram na mandioca e no milho.
O furriel Costa, apercebendo-se da aproximação do
sargento Barreto e do alferes Barros motivados pelo alarido da
discussão, arrastou Braz para dentro do depósito de géneros e em tom
mais aliviado tranquilizou-o, percebendo que este não conseguia alinhavar uma
desculpa que merecesse alguma credibilidade.
- Olha pá! ― Como já
deves ter percebido, eu nunca me preocupei com aquilo que têm dito de ti ao
longo de toda a comissão sobre as tuas ideias sobre esta puta de guerra:
- Para te ser sincero,
não partilho totalmente do teu pensamento embora também condene este conflito
e, neste aspecto, compreendo a tua forma de agir: - aliás, tem sido um
assunto que tenho comentado em privado com o teu furriel Gabriel e admiramos
muito o teu comportamento que apesar de óbvio se tem revelado discreto em face
das circunstâncias.
Apesar de manter uma certa serenidade, o furriel Costa
não hesitou em atalhar no discurso indo directamente ao que lhe parecia ser a
versão mais consentânea com a realidade.
- A malta tem dito que
ultimamente não tens vindo dormir ao quartel desde que andas com aquela miúda
do aldeamento, e eu penso que toda esta situação está relacionada com o
desaparecimento de alguns géneros alimentícios cada vez que vais a Montepuêz.
Lá fora, ouviam-se os gritos dos miúdos que já era hábito
deslocarem-se ao aquartelamento, acotovelando-se em bichas desalinhadas junto
da cozinha para obterem alguns restos de refeição do rancho militar, enquanto
que dentro do depósito de géneros, sentados em cima de sacos de arroz e com as
prateleiras repletas de mercearias várias, os dois iam ouvindo o cozinheiro
resmungar, tentando controlar a avalanche das crianças que numa algazarra
desesperavam por alimento:
- Turras d’um cabrão! ―
andam os vossos pais lá nas matas do norte a darem-nos cabo do canastro e nós
aqui ainda a encher a vossa pança e a tirar-vos a barriga da miséria:
- Ou seja;
alimentamo-vos enquanto são crianças para nos poderem dar um tiro nos cornos
quando crescerem não é?
Após ter ouvido aquela frase, Braz olhou o furriel com uma
intensidade, onde o olhar fixo, tremendamente perturbador parecia querer
fuzilar alguém naquele mesmo instante, onde a explosão de raiva se reflectia
numa voz trémula, ligeiramente soluçante que prendeu de entusiasmo o furriel ao
ponto de o comover, como se tivesse a assistir a uma peça de teatro pincelada
em tons dramáticos.
- Pode ficar tranquilo
furriel!
- Sim, fui eu que roubei
os mantimentos do reabastecimento que tem achado em falta:
Braz dizia-o com uma inabalável convicção de que com aquele acto
estava a restituir algo que não lhe pertencia, contribuindo daquela forma para
que aquelas crianças não tivessem que ouvir dia após dia e ano após ano aquela
revolta do cozinheiro, que embora inconsciente era reveladora daquilo que a
maioria dos nossos soldados pensavam deste conflito colonial, parecendo mais
aliviado pela confissão, não medindo a gravidade da mesma caso o furriel
decidisse fazer a participação do ocorrido ao capitão.
- Mas de uma coisa pode
ficar tranquilo meu furriel!
- Nada do que tirei
reverteu a meu favor nem fui vender para complementar o meu magro pré e poder
comprar “Laurentinas”, mas sim para aliviar o desespero de alguém que vive
naquele aldeamento onde a fome se passeia de mão dada com a revolta cercada de
desespero.
O olhar do furriel Costa parecia inundado de compreensão
que evitava transparecer para não se comprometer, mas o brilho do seu sorriso
envolveu-os numa cumplicidade que irradiava alguma tranquilidade, expressa num
significativo gesto, quando o furriel lhe tocou no ombro de forma afável,
acompanhado de uma frase que lhe causou alguma admiração:
- Fica descansado Braz,
longe de mim agravar ainda mais a tua situação aqui na companhia, agora que
estamos prestes a embarcar para a Metróplole, e depois da suspeita do capitão
(porque ele veio a saber) da tua amizade (diga-se de passagem um pouco
estranha) com aquele casal em Nangade que se provou serem membros da FRELIMO.
- Desde que sejas
discreto e não dês muito nas vistas, mata lá a fome à tua Maria Nyamoro, seu
filho e sua gente, porque é o mínimo que podemos fazer por eles, embora não
compreendam que alguns de nós também estamos aqui contra a nossa vontade e que
nos sentimos, tal como eles, aramados nos nossos aquartelamentos, prisioneiros
e violentados da nossa liberdade (...)
Nota: Pequeno texto retirado do romance "Fardados de Lama", páginas 362, 363 e 364, da autoria de Carlos Vardasca, escrito em 2012 e a editar em Setembro de 2013.
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