Embarquei
no navio Niassa, atracado no Cais da Alcântara no dia 24 de Janeiro de 1971,
com destino aos aquartelamentos de Nangade, Nova Torres, Tartibo e mais tarde a
Muidine, todos no Norte de Moçambique (zona de Cabo Delgado), junto à fronteira
com a Tanzânia na margem do rio Rovuma, incorporado na Companhia de Caçadores
3309 pertencente ao Batalhão de Caçadores 3834 formado em Chaves.
Depois
de embarcados, fomos amontoados no navio em porões nauseabundos sem o mínimo de
condições de higiene e sem o mínimo respeito pela condição humana, enquanto os
oficiais e sargentos gozavam de algum conforto, dispondo de camarotes e sala de
refeições como se tivessem num hotel, e o navio Niassa lá nos foi levando até
ao porto de Luanda, até chegarmos ao cais de cidade de Lourenço Marques
(Maputo) na costa oriental de África, onde nos foi entregue todo o armamento
pessoal.
Depois
de Lourenço Marques, passámos ao largo da cidade da Beira, Quelimane e Nacala até
atracarmos no cais de Porto Amélia (Pemba), onde dormimos dois dias ao relento,
no chão, debaixo do alpendre na zona portuária, acção bem demonstrativa do desprezo
a que mais uma vez fomos votados, apesar da missão a que nos iriam obrigar cumprir.
No dia seguinte embarcámos na fragata da
Marinha de Guerra “NRP João Coutinho”, instalados no convés, com o salpico das
ondas a encharcarem os dolmens onde
nos protegíamos, enquanto os oficiais e sargentos se acomodavam no interior do
navio, fragata esta que nos levou mais para norte, até ao aldeamento de Palma,
onde chegámos no dia 23 de Fevereiro de 1971.
Seguimos
depois em coluna militar para o aquartelamento de Nangade, onde chegámos a 25
de Fevereiro. Enquanto a minha Companhia foi enviada para o aquartelamento de
Nova Torres (Tartibo) junto ao rio Rovuma, eu e outros companheiros ficámos em
Nangade a prestar apoio às colunas de reabastecimento que se efectuavam regularmente
entre os aquartelamentos de Nangade e Palma, num trajecto de cerca de cem
quilómetros, percurso que por vezes demorávamos um ou dois dias a percorrer
devido às emboscadas desencadeadas pela FRELIMO, e às minas anticarro que eram
montadas na picada, cujos rebentamentos provocaram muitas baixas nas nossas
tropas durante esse período.
Foi
durante a realização de uma destas operações, que ocorreu algo que julguei nunca
mais regressar daquele conflito colonial de má memória, não só para mim, mas
para a toda a nossa juventude que nele participou durante os quatorze anos de guerra,
e que passo a descrever.
A
coluna de reabastecimento tinha saído de Palma de manhã cedo, e ao quilómetro
12 as Berliet já seguiam no seu vagaroso e agonizante andamento, uma vez que na
sua frente seguia a pé um grupo de combate com a missão de detectar algumas
minas, enquanto na mata circundante se multiplicavam os sons da natureza que enfrentavam
a nossa indiferença, com as longas lianas que pendiam sobre a picada a
sacudirem-nos o corpo à nossa passagem.
Estava-se
em plena época das chuvas e o calendário, depois de arrancada a folha anterior
mostrava agora o terceiro dia do mês de Janeiro de 1972.
Chovia
torrencialmente, e as cerca de quinze viaturas tentavam (com alguma perícia dos Soldados Condutores), muito lentamente (sempre com a tracção às quatro rodas)
transpor mais uma vez a "Descida
dos Paus",
tentando controlar a direcção para que as viaturas não escorregassem
para o profundo desfiladeiro que ladeava a picada, ora com a azáfama dos
restantes soldados, alguns deles em tronco nu que deixavam a chuva inundar as
toscas tatuagens que garantiam fidelidades eternas, cerrando troncos de árvores
para serem colocados naquele piso lamacento, cuja cor barrenta tantas
preocupações e canseiras davam de cada vez que as colunas de reabastecimento
por ali passavam durante a época das chuvas.
Embora
com alguma demora e dificuldade, aquele obstáculo foi mais uma vez transposto
e, depois de passarmos uma pequena ponte improvisada que já fora por várias
vezes dinamitada pelos guerrilheiros da FRELIMO, a
ansiedade parecia querer aliviar-se com a entrada numa zona da picada com o
piso um pouco mais regular, o que facilitava a movimentação das nossas tropas bastante
ansiosas por chegar ao aquartelamento mais próximo (Pundanhar).
Eu
seguia no "Rebenta Minas"
com mais quatro militares de um Grupo de Combate da Companhia de Caçadores de Mocímboa da Praia e da Companhia de
Artilharia 2745 que estava estacionada em Nangade, que faziam a protecção à
coluna de reabastecimento em conjunto com a Companhia de Caçadores 3472. Na
ânsia de sairmos rapidamente daquela zona e por não nos termos apercebido do
atraso das restantes viaturas, ficámos isolados e bastante vulneráveis em
termos de defesa face a qualquer ataque dos guerrilheiros.
Quando
nos vimos sozinhos e demos conta do nosso isolamento e antes que conseguíssemos
imobilizar a viatura, ocorreram inesperadamente violentas explosões no rodado
traseiro da viatura de três minas anticarro em simultâneo, accionadas à
distância, que destruiu a Berliet imobilizando-a de imediato.
Logo
após aquelas explosões, foi desencadeada uma forte emboscada com armas ligeiras
por um grupo avaliado entre 6 a 10 guerrilheiros da FRELIMO que,
sentindo-se em posição favorável face ao nosso isolamento, tentaram a
aproximação à viatura ao mesmo tempo que disparavam intensamente na nossa
direcção. Foi um momento de vida ou de morte e, no meu caso, embora já tivesse
uma opinião formada sobre as causas daquele conflito colonial, tivemos que
resistir, protegidos pelos destroços da viatura, respondendo ao ataque dos
guerrilheiros apesar de alguns de nós já estarmos feridos, alguns dos ferimentos
já contraídos em consequência dos rebentamentos das minas.
Não
fora a nossa resistência e a chegada das restantes viaturas naquele momento (que forçou os guerrilheiros a refugiarem-se
na mata) as consequências poderiam ter sido bem mais dramáticas do que
as que ocorreram.
Naquela
emboscada eu fui ferido em combate, atingido numa mão por um tiro de
Kalashnikov, e quanto aos restantes
ocupantes da viatura, dois ficaram gravemente feridos; um no peito, outro num ombro e um
terceiro com ferimentos ligeiros numa
perna, em resultado do rebentamento das minas anticarro, da
emboscada e dos disparos daquelas armas automáticas.
Efectuado
o contra ataque das nossas tropas e restabelecida a calma enquanto eram
prestados os primeiros socorros aos feridos, procedeu-se à abertura de uma
clareira na mata com o derrube de algumas árvores para facilitar o acesso do
helicóptero e efectuar a evacuação, tendo todos nós sido transportados para o
Hospital situado mais a sul, no Aquartelamento de Mueda, onde fiquei internado
cerca de um mês.
Foram
momentos dramáticos e, sinceramente, durante toda a minha existência e desde o
incêndio da Fragata D. Fernando II e Glória em 03 de Abril de 1963 a que
sobrevivi com a idade de 13 anos, nunca como naquele dia me senti tão
consciente de estar “tão próximo do outro lado do muro" e não regressar daquele inferno para onde fui
enviado “sem jeito nem prosa”, para “defender uma pátria que nos foi madrasta”.
Ao
longo dos 26 meses de comissão, o rebentamento das minas, o disparar das
Kalashnikov, os disparos das nossas armas pesadas quando respondíamos aos
ataque da FRELIMO, deixaram-me algumas mazelas do foro psicológico, ao ponto de
nos primeiros anos após o meu regresso não poder ouvir os foguetes das festas,
que ficava altamente perturbado, o que felizmente já passou.
Por
outro lado, o som da chegada dos helicópteros à mata para evacuação dos feridos
ou mortos em combate, como foi uma cena que vivi com bastante regularidade de
cada vez que saía para a picada em colunas de reabastecimento ao longo dos 26
meses, de tal forma que ainda hoje e passados que são cerca de 45 anos do meu
regresso daquele conflito colonial de má memória, ainda me sinto bastante
emocionado de cada vez que ouço o barulho do sobrevoar de um helicóptero, ao
ponto de sentir as lágrimas a escorrerem-me pela face, vindo-me à memória os
momentos dramáticos vividos naquele inferno em pleno “Planalto dos Macondes”.
No final da Comissão regressei a Portugal em 6 de
Março de 1973, tendo a minha Companhia (Companhia de Caçadores 3309) regressado
com quatro baixas e vários feridos, e o nosso Batalhão com 20 baixas na sua
totalidade, companheiros que nunca foram esquecidos, dado que são sempre
homenageados anualmente nos nossos Encontros Nacionais, assim como em dois
livros que editei em sua memória com o título: “Do Tejo ao Rovuma. Uma breve pausa num tempo das nossas vidas” (2012) e num romance autobiográfico a que dei
o nome de “Fardados de Lama”,
editado em 2015.
Alhos Vedros, 28 de Fevereiro de 2018
Carlos Vardasca
Ex-militar da Companhia de Caçadores
3309
Norte de Moçambique. Cabo Delgado
(1971-1973)
68 anos. Casado. Tenho duas filhas
e três netos.
“Descida dos
Paus”. Itinerário muito íngreme, de piso lamacento e escorregadio devido às
fortes chuvadas, sendo necessário colocar troncos de árvores para facilitar a
passagem das Berliet que integravam
Frente de Libertação de Moçambique
“Rebenta
Minas”. Berliet que seguia sempre na frente das colunas de reabastecimento,
reforçada
Que rendeu a Companhia de Caçadores 2703 no Aquartelamento
de Pundanhar em 02 de Janeiro de 1972.
Registado no Relatório da Região Militar de
Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade.
Arma automática de fabrico russo utilizada pelos
guerrilheiros da FRELIMO.