quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Quando os "Checas" chegaram a Nangade.

(...) Depois de ter pernoitado em Pundanhar e percorrido mais cerca de cinquenta quilómetros, a coluna militar aproximava-se agora do seu destino.
Ainda as primeiras viaturas tinham acabado de entrar no aquartelamento de Nangade e já a recepção aos “Checas” era encenada com uma tal perfeição, não fora as câmaras de televisão de cartão contrastarem com a realidade dos silvos dos morteiros que disparavam compassadamente; do roncar dos Obus 14
[1] e do tagarelar das antiaéreas que, em coro, se faziam disparar do planalto em direcção ao morro que se erguia todo majestoso depois do extenso vale, em direcção ao Lago Nangade que antecedia o rio Rovuma e as escuras escarpas das montanhas da Tanzânia.
Os soldados saíam como ratos dos abrigos e disparavam rajadas de metralhadora exteriorizando o seu contentamento por verem chegar uma nova Companhia, enquanto alguns corriam pela pista de aviação improvisada, deambulando da viatura em viatura, não contendo a sua alegria na procura de algum conterrâneo.
- Epá! - Não há aí nenhum cabrão de Meimoa? - dizia um soldado com um excessivo entusiasmo, ao que o Nabais respondeu do alto da viatura sentado em cima de um amontoado de sacos de farinha:
-
Vamos por partes, cabrão és tu, mas de Meimoa sou eu.
- Olha o “contrabandista”! - gritou o outro de alegria ao reconhecer-lhe a voz.
Nabais, ao reconhecer o seu amigo de infância, saltou de imediato para a pista poeirenta (onde se abastecia um helicóptero que acabara de trazer o correio) e abraçou-o, apertando-o com tanta força que parecia querer esmagá-lo contra o seu peito.
-
Vocês tiveram muita sorte em não terem sido atacados na coluna - continuando a explicação para quem o ouvia:
- Nesta zona há maningue
[2] de turras e eles costumam, para além dos ataques normais aos aquartelamentos, atacar as colunas de reabastecimento quando sabem que nelas vêm companhias de “Checas” para alguma rendição - tranquilizava o amigo do Nabais.
Fazendo parte da encenação que tinha como objectivo impressionar as tropas acabadas de chegar e que agora já se encontravam formadas em frente à messe de oficiais, alguns soldados, que exibiam as divisas de capitão e de major, passeavam-se por entre a formatura implicando com tudo o que poderia ser objecto de chacota, provocando a gargalhada nos demais soldados que assistiam, perante a indiferença ou a risota contida de alguns dos oficiais que tinham emprestado os seus galões para a brincadeira, enquanto o furriel Champalimoud, enfermeiro do Batalhão de Artilharia 2918 se esforçava por registar aqueles momentos na sua velha Olympus.
-
Oh nosso soldado, então isto são modos de se apresentar na formatura? - todo molhado, com a barba por fazer e as botas todas enlameadas:
- Não foi assim que te ensinaram na puta da recruta pois não?
Ao que o soldado Saavedra da C.CAÇ. 3309, meio receoso mas indignado respondeu:
-
Meu capitão, como vê, acabei de chegar do mato e como é que eu fazia a barba?
- ...Com os teus cornos meu maricas; ― respondeu o primeiro, fingindo-se rabugento.
A indignação apoderou-se do Saavedra que de vermelho se parecia com uma caldeira de uma locomotiva a vapor pronta explodir. O soldado, que se passava por capitão, apercebendo-se do semblante carregado do soldado que traduzia a revolta interior que provocara, deu em rir à gargalhada abraçando-se de imediato ao Saavedra.
-
É pá, desculpa lá, eu fui longe demais!
-
Isto é apenas uma brincadeira que é tradição fazermos às tropas que chegam do novo aqui a Nangade.
- Não me leves a mal mas eu não sou capitão - ao que o Saavedra respondeu enfurecido mas esboçando um ligeiro sorriso:
-
Não és capitão, mas estavas prestes a ser um monte de merda tombado aí no chão, com um tiro nos cornos, se teimasses em levar a brincadeira mais longe.
Entretanto, pelo silêncio que se apoderou de toda a formatura, adivinhava-se já a presença do Tenente Coronel Vasconcelos Porto, comandante do aquartelamento de Nangade e pertencente ao Batalhão de Artilharia 2918, que numa pose que aparentava alguma arrogância, iniciava o seu discurso de boas vindas à 3309 aos 25 dias de Fevereiro de 1971 (...)


Carlos Vardasca
25 de Fevereiro de 2009

in: "Fardados de Lama", páginas 31,32 e 33. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 2007.

[1] Peça de artilharia pesada.
[2] Muitos, em dialecto Maconde.

Foto 1: O Saavedra, posa para a foto dentro do barco capturado pela C.CAÇ. 3309, quando guerrilheiros da FRELIMO tentavam atravessar o rio Rovuma vindos da Tanzânia (que se vê ao fundo). Aquartelamento de Nova Torres. Moçambique, 1971.
Foto 2: O Saavedra (ao centro e em tronco nu) na companhia do 1º Cabo Atirador Serrinha, do "Cartaxo" e de outro companheiro da Companhia de Caçadores 3309. Aquartelamento de Tartibo. Moçambique, 1971.
Foto 3: O Saavedra (o primeiro a conta da esquerda) na companhia do 1º Cabo Mecânico Silva e do Soldado Condutor Carlos Vardasca (Braz), junto da caserna que foi atingida com granadas de morteiro 82mm (é visível a vasta perfuração na chapa de zinco) num dos ataques da FRELIMO ao Aquartelamento da C.CAÇ. 3309. Tartibo. Moçambique, 1971

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