sábado, 31 de julho de 2010

"O outro lado oculto da guerra"

(...) Lucas Likwalu[1] e Florinda Nakulola[2], pais de Raimundo, licenciaram-se ambos muito cedo em Antropologia no ISCSPU[3] em Lisboa, tendo partido para Moçambique depois de perderem algum tempo à procura de colocação que mais tarde vieram a perceber da sua impossibilidade, devido à sua participação em actividades na luta estudantil a favor da descolonização, actividade que a PIDE acompanhou desde o princípio e que lhes valeu alguns meses de prisão, encarregando-se posteriormente de lhes vedar o acesso a qualquer tipo de emprego.
Regressados a Moçambique e integrados voluntariamente numa das estruturas da FRELIMO, foram destacados em 1963 para o norte, para a Província de Cabo Delgado e, em Nangade, ajudaram a organizar uma das células que iria dar apoio ao início da Luta Armada de Libertação Nacional em Moçambique em 25 de Setembro de 1964, cuja missão era manter aquela célula em permanente contacto com os seus combatentes no mato, informando-os de todas as movimentações militares que vieram a desenvolver-se em Nangade.
Com o nascimento de Raimundo e com o recrudescimento da actividade guerrilheira e devido ao isolamento a que se dedicaram voluntariamente em favor da libertação de Moçambique, já tinham pensado enviar Raimundo para casa dos avós em Lourenço Marques, pois tomaram consciência de que estavam a comprometer o futuro do filho em termos educacionais mas, diziam, talvez valer a pena por se tratar de uma causa que diziam ser patriótica e que previam estar concluída para breve com a resolução do fim do conflito colonial.
Viviam totalmente integrados nos modos de vida e costumes da comunidade da etnia Maconde que os protegia, trabalhando Lucas como carpinteiro e Florinda na agricultura nas machambas próximas do aquartelamento, enquanto que Raimundo, no intervalo das aulas, se deslocava à zona militar para recolher as roupas dos soldados para a mãe lavar, contribuindo daquela forma para o desafogo do orçamento familiar.
A noite estava bastante quente e por cima dos telhados de colmo das palhotas brilhava uma cor de fogo que iluminava os batuques no aldeamento Maconde (...)
[1] Peixe magro em dialecto Maconde.
[2] Vou olhar por ti, em dialecto Maconde.
[3] Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas, actualmente Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).

(...) Já a noite caminhava por entre recordações e lembranças fustigadas pela distância; pelo olhar de uma pequena fotografia meio amarrotada de um familiar bem distante e a embriaguez de quem não esquecia uma lua de mel interrompida por um papel timbrado feito nota oficiosa, quando ao longe várias rajadas de metralhadora soaram dentro do abrigo, fazendo com que a maioria dos presentes corresse de imediato para os postos de defesa, seguindo-se um ensurdecedor matraquear de disparos tanto dos quatro obuses e das antiaéreas dispostas em redor do aquartelamento, assim como dos postos avançados de defesa que faziam disparar a suas armas varrendo todo o matagal junto ao arame farpado, enquanto aquelas armas pesadas fustigavam o vale e as escarpas do planalto situado defronte de Nangade.
Não se ouviu, de facto, qualquer disparo de granadas de morteiro vindas do planalto bastante arborizado de onde era costume a FRELIMO atacar o aquartelamento, para justificar aquela reacção e, de madrugada, a notícia do que realmente tinha acontecido já se espalhava por toda a zona militar:
- Foram uns cabrões dos turras que tentaram entrar esta noite no arame farpado junto ao aldeamento dos Macondes, e parece que os nossos sentinelas abateram dois; um ainda conseguiu fugir mesmo bastante ferido:
- Pelos vestígios de sangue deixado no capim e junto ao arame farpado também não deve ter ido muito longe
- dizia um dos soldados da CCS que estivera de reforço durante a noite no posto avançado próximo do local do tiroteio.
A curiosidade fez com que Braz interferisse na conversa, interrogando o mesmo soldado sobre o ocorrido:
- Mas naquele posto do aldeamento Maconde não era hábito os cipaios fazerem lá o reforço da noite? - perguntou, denotando alguma preocupação sobre as circunstâncias do incidente.
- Era! - Respondeu o soldado bastante nervoso, continuando a contar o ocorrido:
Como o nosso comandante já andava desconfiado que eles permitiam a entrada dos turras durante a noite, substitui-os de surpresa por soldados da nossa tropa:
- Esta noite foram apanhados três na “ratoeira”; - Lerparam dois e houve um turra que conseguiu fugir para dentro do aldeamento; - andam agora as nossas tropas a “vasculhar” todo o aldeamento para ver se o encontram.
Um forte sentimento de perda penetrava bem fundo no subconsciente de Braz que decidiu tentar saber o que de facto ocorrera; se Lucas Likwalu estava envolvido no tiroteio e se alguma coisa de grave lhe acontecera.
Naquela noite Lucas regressava de mais uma das suas missões na mata, sendo surpreendido pelos disparos vindos do posto de observação próximo da abertura no arame farpado, por onde era hábito introduzir-se no aldeamento.
Gravemente ferido ainda conseguiu, a muito custo, chegar à sua casa e receber os primeiros socorros e, por estar no estado em que a tropa o encontrou depois de algumas buscas ao aldeamento, fizeram-lhe os curativos necessários e deixaram-no ficar na palhota não optando pela sua prisão, sabendo que por muito resistente que fosse a sua vida estava por um fio.
Quando Braz chegou próximo da palhota de Lucas já a mesma se encontrava rodeada de militares, enquanto que do interior se ouviam choros de angústia que Florinda Nakulola exteriorizava, misturados com injúrias em dialecto Maconde, disparadas em todas as direcções mas que visavam essencialmente a tropa, que tinha ferido gravemente o seu marido, tão inesperadamente e daquela forma tão trágica.
Justificando querer ir buscar alguma roupa que Raimundo lhe teria lavado, Braz teve a permissão para entrar em casa; até porque quem fazia a guarda à palhota eram dois soldados seus conhecidos que lhe avisaram:
- Entra mas despacha-te; porque parece que estão para chegar dois gajos da PIDE para reconhecerem a identidade do ferido e pode ser muito chato eles encontrarem-te aí dentro.
- Eu não me demoro
— tranquilizou Braz.
O corpo de Lucas permanecia deitado numa esteira, onde agonizava, agasalhado por uma manta escura, bordada com motivos tradicionais Macondes, com os olhos fixos no amigo que acabava de entrar.
Com a moral tremendamente desfigurada que o tornavam irreconhecível e consciente que a vida se desfalecia sem que alguém o pudesse socorrer, ainda esboçou algumas palavras que dirigiu à mulher e ao filho num dialecto que Braz não entendeu, virando-se inesperadamente para o amigo e, a muito custo, antes que sucumbisse, ainda conseguiu articular os lábios e soletrar aquela frase que jamais esquecera e a ela se referia sempre que se encontravam:
- Adeus “Fardado de Lama”; ― ao que Braz respondeu extremamente comovido e, em jeito de homenagem, pincelando a frase do simbolismo que se espelhava no seu semblante que traduzia aquele momento prenhe de emocionalidade:
- “Vai!... - vai guerrilheiro”:
- “Parte...! - parte para a densa mata e descansa aí tranquilamente o teu sono eterno, que a luta que não pudeste acabar fica em boas mãos; ― Eles, os teus companheiros de luta de certeza vão dar conta do recado”.
Consciente que Lucas não acabara de ouvir a sua frase, Braz repetiu-a sabendo-o já defunto, virando-se para a esposa dizendo ao seu ouvido:
- Não desesperes porque a independência de Moçambique já não tarda :
- Ele vai ter a justa homenagem que bem a merece.
Florinda
e seu filho Raimundo, sentados ao seu lado choravam lágrimas que pareciam de fogo, e os seus olhos humedecidos disparavam tristezas e angústias cuja dor se confundia com o ódio.
Depois de cumpridos os rituais Macondes; apesar de saberem não ser as suas origens mas querendo prestar-lhe a justa homenagem como um dos seus combatentes, o funeral de Lucas Likwalu realizou-se no cemitério junto ao aldeamento daquela etnia, com a presença de grande número de elementos da população nativa e de alguns militares. Braz também fez questão de comparecer acompanhado do Foz e do Nabais, sem que antes tivessem sido intimados a justificarem-se perante os dois agentes da PIDE, que os questionou sobre o motivo da sua presença ali, aos quais responderam que estavam ali por mera curiosidade; agentes que não arredaram pé, fazendo-se acompanhar por um elemento da população que lhes traduzia tudo o que era dito, certificando-se do enterro do corpo e garantirem, com a sua presença, que durante a cerimónia não ocorreriam quaisqueres manifestações de cariz independentista (...).

In: "Fardados de Lama" (Romance). Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 21 de Setembro de 2009. Páginas 230, 231, 232 e 233.

Foto 1: O Braz na pista de aterragem de Nangade, num dos dias em que o Nord Atlas ali aterrou para abastecimento e levar forças de Paraquedistas para uma intervenção de ataque às Bases da FRELIMO nas redondezas.
Foto 2: Vista aérea do Aquartelamento de Nangade e aldeamentos da várias etnias (Maconde e Macua) que o ladeavam.
Foto 3: Bandeira da FRELIMO encontrada junto de uns panfletos de propaganda encontrados na mata próximo do Aquartelamento de Pundanhar-

1 comentário:

Fernando Vouga disse...

Caro amigo

Parabéns pelo seu blogue. Já dei uma vista de olhos e gostei do que vi.

Um abraço