Aproximava-se o dia 6 de Julho de 1971, dia do aniversário do “Rebenta Minas[1], e este já vinha prometendo que iria ser um dia para não esquecer. Já há alguns dias que, no final do rancho, se vinha aproximando da cozinha para aproveitar os restos das folhas das couves e de outras verduras, parecendo já ter um objectivo bem definido quanto à recolha daquelas verduras.
Era frequente que em redor da zona militar, mais concretamente junto à caserna e à oficina da Companhia de Caçadores 3309 aparecerem algumas cabras e cabritos vindas do aldeamento Macua, que no seu pastoreio regular ultrapassavam o aldeamento para lá do arame farpado quase inexistente, entrando na zona militar na procura de alimento, que muitas das vezes não passava de velhos trapos e papéis de jornal ressequidos que mastigavam com tanta sofreguidão como se tratasse de ervas de um prado verdejante.
De madrugada, no mesmo dia do aniversário do Silva, este, com a cumplicidade do Foz[2], e sem que todos nós soubesse-mos, pôs em prática a estratégia há muito pensada, que consistia em espalhar no chão várias folhas de couve, de forma a formar uma espécie de trilho que conduziria os caprinos esfomeados ao interior da oficina. Estratégia que resultou em cheio, quando dois dos cabritos do pequeno rebanho foram consumindo as folhas espalhadas pelo chão, até entrarem na oficina e se banquetearem com um amontoado de folhas de couve, ignorando que tinham sido apanhados na armadilha quando a porta se fechou repentinamente.
De imediato, e sem que o nativo que as pastoreava se apercebesse do seu paradeiro, já os pobres cabritos tinham sido degolados, esquartejados e alinhados em dois tabuleiros enormes, temperados em vinha d’alho, ficando prontos, depois de rodeados por minúsculas batatas, para serem regados com Laurentinas ou 2M[3] nessa mesma noite, ao som de “…Lá longe, onde o sol castiga mais, não há suspiros nem ais, há coragem e valor…”[4], cantilena que se prolongou pela noite dentro já com as mentes toldadas, que não se apercebiam da choradeira que as hienas faziam muito para lá do arame farpado, bem no interior da mata circundante, nem do troar dos canhões que nessa noite se ouviram quando a FRELIMO atacava o aquartelamento de OMAR[5] situado num outro Planalto defronte de Nangade.
O ambiente era de facto festivo e, no aconchego da noite e enquanto lá fora o cacimbo refrescava o capim, no interior da oficina respirava-se uma atmosfera de alegria mas com alguma raiva contida, inspiradas nas pinturas que salpicavam as paredes, alusivas ao programa televisivo “Zip-Zip” e ao símbolo da paz com a inscrição “Make love not war” que tanto irritava o capitão[6], que por várias vezes insistiu para que as apagasse-mos mas idênticas vezes ignorado.
Naquele “antro de conspiração”[7], a festa de aniversário do Silva prosseguia, estando presentes, para além dos condutores, mecânicos e o “Francês”[8] da Companhia de Caçadores 3309, estavam também como convidados dois Furriéis que não eram desta Companhia, um deles era o “Coca-Cola”[9] que ajudava à festa com alguns fados de Coimbra e com algumas músicas de intervenção à mistura que se prolongaram pela noite dentro.
No dia seguinte, acordámos todos com um grande reboliço junto da nossa caserna.
Era o dono dos cabritos que, ora em dialecto Macua ora num português meio desconjuntado gritava a plenos pulmões:
― “Os tropa roubou o meus cabra” ― Enquanto que o Capitão Hélio Moreira vindo da secretaria que ficava ali bem perto, dizia quase que em surdina:
― “Querem ver que estes cabrões já fizeram outra vez das suas” ― Ao mesmo tempo que vasculhava o bidão do lixo e verificava o porquê das razões de desespero do nativo, sem que este se apercebesse.
Depois de ter convencido o nativo a abandonar a zona militar, o Capitão dirigiu-se de novo à caserna dos Condutores e em tom agressivo disparou:
― Quer dizer que o rancho ontem à noite foi arroz com peixe e os meninos transformaram as espinhas em ossos, não foi? ― Continuando:
― Se o Vasconcelos Porto[10] vier a saber desta merda, por causa daquela porra da “Psico”, vocês estão todos fodidos.
Carlos Vardasca
15 de Junho de 2011
[1] Alcunha de António Oliveira Silva, 1º Cabo Mecânico Auto NM 16924970 da Companhia de Caçadores 3309.
[2] Alcunha de Eduardo da Silva Machado, Soldado Condutor Auto NM 15189470 da Companhia de Caçadores 3309.
[3] Duas marcas de cerveja de Moçambique.
[4] Canção de Paco Bandeira, muito em voga na época.
[5] Aquartelamento situado a cerca de 50 quilómetros de Nangade, onde estava estacionada a Companhia de Caçadores 3310, do mesmo Batalhão da Companhia de Caçadores 3309; O Batalhão de Caçadores 3834.
[6] Hélio Augusto Moreira, Capitão Miliciano e comandante da Companhia de Caçadores 3309.
[7] Adjectivo atribuído à oficina (onde regularmente se realizavam os petiscos) pelo Capitão Hélio Moreira.
[8] Alcunha do Soldado Cozinheiro da C.CAÇ. 3309, Agostinho Monteiro Ribeiro.
[9] Alcunha do Furriel do Batalhão de Artilharia 2918 também estacionado no Aquartelamento de Nangade.
[10] Tenente-Coronel, Comandante Militar do Aquartelamento de Nangade, pertencente ao Batalhão de Artilharia 2918.
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