domingo, 25 de setembro de 2011

Leituras em tempo de guerra

(…) A pequena oficina dos condutores, cujas paredes estavam decoradas com pinturas alusivas aos movimentos hippies e com inscrições dos nomes de todos os elementos da “Ferrugem[1], servia de “refúgio” e de local de encontro e de convívio entre os elementos daquela especialidade.
As petiscadas que ali se organizavam eram muito comentadas em Nangade, associando-se a elas outros militares que não pertenciam à 3309, sendo o tema das conversas muito variado, descambando sempre, por entre nacos de carne mal tragada e de cervejas mal fermentadas, na contestação ao regime e à guerra colonial, que equiparavam à Guerra do Vietname.
Numa das paredes, Braz, que tinha algum jeito para o desenho, desenhou o símbolo dos “Aceleras”[2] personificado na pata de galinha com a inscrição “Make love not war”, seguindo-se, ao lado daquele símbolo da paz todos os nomes da malta da “Ferrugem” e das suas terras de origem ou de onde diziam ser, onde se descortinava ingénuamente um forte complexo de interioridade ao esconderem a sua verdadeira naturalidade.
Tal como na caserna, ali mesmo ao lado, outros pequenos desenhos foram pincelados; como o símbolo do programa de televisão “Zip-Zip”[3] que ajudavam a decorar as suas paredes enegrecidas, com cunhetes[4] do Obus 14 vazios, empilhados em cima uns dos outros a servirem de estante, dando forma a uma biblioteca improvisada a que  Braz denominava de “solta ao vento”, onde o romance de Leon Uris, “Êxodos” e “Memed meu falcão” de Yachar Kemal se encostavam ao da “25ª Hora” que no cinema fora interpretado por Antonny Quinn; apertados contra “Os irmãos Artamonov”, amparado pelo “Exército Sagapo” de Ugo Pirro e a “Rua” de Manfred Gregor, que se acotovelavam uns contra aos outros na ânsia de serem os preferidos do próximo leitor, que o ajudaria a esquecer outros cenários menos tranquilos.
Sem se digladiarem, conviviam também dentro do mesmo cunhete de munições “A Primavera de Praga” de Pavel Tigrid, e “Para que a terra não esqueça” de Léon Weliczker Wells, que serviam de escudo a um outro mais subversivo para a época, e que por esse motivo se escondia por detrás daqueles; “A Mãe” de Máximo Gorky.
A maioria dos livros retractavam não só um dos gostos pela leitura de Braz assim como as suas preocupações naquele mundo conturbado, como era o caso de um deles (que era um dos mais solicitados) sobre a causa Palestiniana e a sua luta contra a ocupação Israelita, logo seguido de “Lolita” de Nabakov que inspirava  masturbações pela calada da noite e ao cair do cacimbo que emudecia a lua, enquanto ao longe se faziam ouvir o rufar dos tambores personificados pelos morteiros 82mm, de onde a FRELIMO fazia vomitar bolas de fogo sobre algum aquartelamento onde dormiam soldados exaustos e jaziam esperanças adiadas.
De madrugada, já com os corvos a sobrevoarem o aquartelamento, saíra a já programada coluna de reabastecimento com destino a Palma.
Como o pelotão de reconhecimento logo pela madrugada se pusera ao caminho para fazer a detecção das minas na picada até ao quilómetro 25, metade do percurso entre Nangade e Pundanhar fizera-se sem problemas, e a progressão das viaturas militares que depressa chegaram a este aquartelamento fora facilitada, dado que um dos pelotões ali estacionados fizera o mesmo, mas na direcção de Nangade.
As palmeiras tombavam sobre o aquartelamento e o emaranhado de palhotas que se entrelaçavam por entre as tendas militares; a verdejante folhagem das bananeiras e a azáfama da população local que se misturava por entre os soldados que envergavam camuflados já esventrados pelo tempo, prisioneiros do arame farpado que lhes esventrava a liberdade e que rodeava todo o aquartelamento numa dualidade tão perversa,  emprestava, apesar de tudo, àquela linha de defesa militar encostada a uma extensa lângua prenhe de vida animal, um cenário paradisíaco esquecido entre o arvoredo deslumbrante que deixava trespassar raios de sol tão brilhantes, mas também, a realidade cruel para quem participava numa guerra nos confins do inferno e convivia de braço dado com o isolamento (…)
Carlos Vardasca
25 de Setembro de 2011

In: Fardados de lama (romance) páginas 66,67 e 68. Carlos Vardasca. Alhos Vedros, 2009
Foto 1: Mural pintado na oficina da Companhia de Caçadores 3309 no Aquartelamento de Nangade. 1971
Foto 2: Vista aérea do Aquartelamento de Nangade. Moçambique 1971

[1] Como eram denominados os elementos da especialidade de Condutores e Mecânicos da C.CAÇ. 3309.
[2] Adjectivo atribuído aos condutores.
[3] Programa de televisão dos anos 70 apresentado por Carlos Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado.
[4] Caixotes de munições.

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