segunda-feira, 7 de julho de 2008

"Quando se adormece à sombra de um sobreiro"



(...) A coluna tinha feito uma pequena pausa mesmo à saída do Aquartelamento de Nangade e o "Alentejano" (1) aproveitou para perguntar ao seu Mainato que calhou passar por ali:
- "Então pá, a minha roupa está já lavada"? - Ao que o rapaz respondeu num português meio desarticulado mas perceptível:
- "Os teu roupa estar lavado à maningue tempo": - "quando patrão vier dos mato eu ir lá no teu caserna e levar os teu roupa bem passadinho".
As viaturas circulavam já na picada nova dirigindo-se para o Aquartelamento de Muidine, numa missão de reabastecimento escoltada por dois pelotões da Companhia de Caçadores 3309. Construída no âmbito da "Operação Fronteira", aquela picada era bastante larga permitindo a circulação de viaturas militares nos dois sentidos, para além de ser bastante movimentada, nada se prevendo que algo de trágico aconteceria ao quilómetro 9. No interior da mata estava um outro pelotão da C.CAÇ. 3309 fazendo protecção à Companhia de Engenharia 2736, que procedia a trabalhos de desmatação junto ao perímetro da picada, quando de repente se ouve um estrondo enorme e se vê um espesso fumo enegrecido a elevar-se como um "cogumelo" gigante por cima da copa das árvores. Por entre todo aquele fumo, movimentavam-se meio atordoados soldados com a cara tisnada de negro que corriam em todas as direcções, procurando socorrer os vários soldados que agonizavam junto à Berliet minada ou à berma da picada repleta de vários destroços. Por a picada ser bastante larga, a FRELIMO colocara várias minas anti-carro em toda a sua largura, certificando-se assim que alguma viatura as accionaria.
Naquele acidente em combate ocorrido no dia 05 de Julho de 1972, foram accionadas pela Berliet duas minas anti-carro bastante reforçadas (ficando uma outra por rebentar mesmo junto ao rodado traseiro da Berliet) que provocaram a destruição total da viatura e causando um morto e 13 feridos à C.CAÇ.3309, quatro deles com gravidade que tiveram que ser evacuados para o Hospital de Mueda.
Enquanto o helicóptero não chegava para efectuar as respectivas evacuações e o enfermeiro Cardoso procedia à prestação dos primeiros socorros aos soldados feridos, viviam-se no entanto, em plena picada, momentos de consternação pela perda de um companheiro que entre todos gozava de uma grande estima e admiração, pela sua simplicidade e espírito de camaradagem.
O "Alentejano", do 4º Grupo de Combate da C.CAÇ.3309, jazia agora tapado por uma capa camuflada na berma da picada, "não podendo mais resfrescar-se à sombra dos velhos sobreiros que rodeavam as Minas de São João em Aljustrel, onde residia", como era hábito dizer quando se lembrava das terras alentejanas que o viram nascer.
No dia seguinte, quando o mainato se dirigiu à caserna para levar a roupa ao "Alentejano" e lhe disseram o que acontecera com o seu "patrão", o rapaz olhou-nos muito sério parecendo não acreditar no que ouvia, sentando-se de imediato no chão a chorar enquanto dizia:
- "Os roupa está aí e eu já não querer lavar mais roupa dos tropa" - afastando-se da caserna enxugando os olhos ao que restava de uma camisola de alças que vestia, meio rasgada em pequenas tiras, que de encardida se confundia com a cor da sua pele.
Comovido com aquele situação, um soldado correu atrás dele e devolveu-lhe a roupa dizendo-lhe:
-"Toma lá: - fica com a roupa dele e se alguma coisa não te servir fica para os teus irmãos".
No dia seguinte, à hora do rancho e como era hábito ali dirigir-se com uma velha lata para que lhe dessem algum comer, o mainato do "Alentejano" apareceu vestido com a farda que lhe tínhamos dado, dizendo já mais sorridente mas ainda um pouco contido:
- "Eu ir vestir sempre este roupa até eu morer e os meus olho ficar fechado maninge e não ver mais este terra" (...)


Carlos Vardasca
07 de Julho de 2008

Foto 1: O "Alentejano" (em primeiro plano) junto de companheiros da C.CAÇ. 3309 numa operação, ao atravessarem o rio Metumbué próximo do Aquartelamento de Tartibo, e foto (mais pequena) tirada no Aquartelamento de Nova Torres em 1971.
Foto 2: Momento do reboque da Berliet minada na picada Nangade-Muidine logo após o acidente, em 05 de Julho de 1972.
(1) "Alentejano", 1º Cabo Atirador NM 11934670, António José Pereira do 4º Grupo de Combate da Companhia de Caçadores 3309, natural de Stª Graça dos Padrões (Almodôvar) nascido em 16 de Janeiro de 1949.


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