segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

"No Silêncio das Casernas"


(...) Já não era segredo para ninguém para onde os “lateiros do regime” nos queriam enviar. Regressados de umas pequenas férias onde espalhámos a angústia no colo de quem já nos embalara a infância; onde nem os 500 escudos com que nos quiseram adoçar o patriotismo e que se perderam na profundidade dos nossos bolsos chegaram para abafar tanto protesto, lá regressámos ao Regimento de Infantaria 9 em Viana do Castelo para concluirmos o IAO (1) e aí nos treinarmos para a “arte de bem defender a pátria e matar a toda a cela”.
Disseram-nos que íamos para Moçambique, bem lá para norte onde o Índico beijava as praias manchadas pelos desembarques, e onde a morte escurecia todos os medos e tingia de negro as mulheres deste pequeno pedaço térreo feito império.
Regressados dos montes que circundavam Santa Luzia, exaustos e com a poeira a maquilhar faces carregadas de incertezas, o silêncio da noite que se instalava nas casernas emprestava momentos em que o desconforto da tristeza não permitia, entre olhares cúmplices que se cruzavam, esboçar um sorriso sequer, mesmo que encenado pelo angustiado dedilhar da guitarra e o amarelado baralho de cartas.
Em cada canto daquela caserna, incrustada no interior das muralhas do forte de Santiago da Barra onde todas as Companhias do Batalhão de Caçadores 3834 foram aquarteladas, reprimiam-se emoções toldadas pelo sono que tardava e recordava-se alguém que ficara distante, lá no interior das centenárias aldeias de granito e telhados de ardósia, onde as crianças já não brincavam e os velhos teimavam em existir.
Tentando esboçar em prosa o antídoto para tranquilizar quem já não tinha tempo para se deixar tranquilizar, debruçados sobre malas que guardavam felicidades adiadas, os soldados recostados nos seus beliches preenchiam pequenos rabiscos em folhas de linhas azuis, que depois de alguma hesitação eram introduzidos à pressa dentro de envelopes para que o odor da tristeza não chegasse às aldeias mais recônditas de um país que, já não sabia o que fazer a tanto protesto e que fingia não ter medo dos seus gritos, alguns deles a rasgarem gargantas roucas que ecoavam do fundo das masmorras.
O dia do embarque já espreitava lá para sul e já não estava longe.

24 de Janeiro de 1971 aproximava-se a uma velocidade vertiginosa que obrigava as frágeis e finas "BIC" a deslizar por aquelas linhas, onde se amontoavam promessas que a dúvida ainda não permitia formalizar mas que a certeza teimava em moldar todos os medos.
Por entre a escuridão dos beliches que se amontoavam na velha caserna, os olhares multiplicavam-se, distantes, muito sós, interiorizando receios que ofuscavam felicidades que pareciam ter sido traídas, mas sonhando com regressos incertos daquela África onde nos diziam só existir povos submissos, mas que do troar dos canhões já se desenhavam os ventos de libertação de quem da mata à muito reivindicava ser povo, “mas povo de verdade e a tempo inteiro” (...)

Carlos Vardasca
18 de Janeiro de 2010
(1) Instrução de Adaptação Operacional.

Foto 1: Um grupo de militares da Companhia de Caçadores 3309 posa para a foto no Regimento de Infantaria nº 9 em Viana do Castelo, após ter regressado de um dia de instrução nos montes de Santa Luzia. Viana do Castelo,1970.
Foto 2: O Alfredo (Monção), Sousa, Serafim e Pinto Lopes jogam uma "suecada" na caserna, tentando baralhar as tristezas. Viana do Castelo, 1970.
Foto 3: O "Pragal" (falecido em 2005), Manuel, Arteiro, Carlos Vardasca, Pinto, Pereira (falecido em 1975), Ferreira e Matos, numa foto em grupo depois de uma sessão de guitarrada. Viana do Castelo 1970.
Foto 4: No silêncio da caserna, o Almeida põe a escrita "em dia" uma semana antes de embarcar. Viana do Castelo 1970.
Foto 5: A Companhia de Caçadores 3309 desfila nas ruas de Viana do Castelo alguns dias antes do embarque para Moçambique. Viana do Castelo, 1970.

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