Tenho acompanhado de perto a polémica à volta das declarações um pouco infelizes do escritor António Lobo Antunes, sobre o comportamento das nossas tropas em teatro de guerra que não subscrevo na sua totalidade, mesmo que tivessem sido produzidas no âmbito ficcional.
Algumas daquelas declarações poderão não ser totalmente verdade mas evidenciam e contêm um pouco da realidade e do ambiente que se vivia no período colonial, não só nas cidades mas também nos locais mais recônditos onde as nossas tropas estavam aquarteladas.
No momento mais “escaldante” desta controvérsia, apenas fui observando as diversas manifestações vindas das mais variadíssimas proveniências, mantendo-me à distância das mesmas para as poder analisar à luz da minha experiência também como ex-combatente da Guerra Colonial, mais concretamente nos Aquartelamentos de Nangade, Tartibo, Pundanhar, Muidine e Palma, todos em Cabo Delgado, norte de Moçambique, nas margens do rio Rovuma junto da fronteira com a Tanzânia.
Tal como as declarações proferidas por aquele escritor, confesso que também fiquei bastante impressionado e estranhei a forma como alguns ex-combatentes reagiram às mesmas, com declarações pinceladas de um “patriotismo balofo”, como se ignorassem ou fingissem ter esquecido o comportamento da maioria dos nossos soldados para com as populações nativas durante o conflito colonial.
A descrição feita por António Lobo Antunes sobre o comportamento das nossas tropas pode não corresponder totalmente à realidade, mas “que nem sempre fomos bons rapazes” é uma verdade inquestionável que nenhum ex-combatente ousa desmentir, mesmo que isso ainda hoje lhe corroa a consciência.
A grande maioria das nossas tropas (e não faz mal nenhum reconhecer este facto) era oriunda dos meios rurais, de fraca escolaridade, incultas, “embrutecidas” pelos discursos e as ladainhas dos párocos da aldeia, sendo educados desde tenra idade com uma visão da guerra colonial decalcada dos catecismos do regime.
Chegados a África, confrontados com uma população que o regime lhes disse ser inferior e os seus guerrilheiros classificados como terroristas, era natural ver os nossos soldados no seu relacionamento com as populações a exibirem a sua pose de superioridade, mesmo que vinda de um simples trabalhador rural ou de um daqueles emigrantes que na procura de uma vida melhor vegetou nos bidon-vile’s em terras de França e que, sem qualquer superioridade moral para humilhar aqueles povos de cor de pele diferente, os tratavam com alguma arrogância, indiferença ou desprezo, como se fossem seres inferiores.
Embora houvesse excepções (talvez uma minoria pouco expressiva com alguma consciência política) fazer crer que “fomos todos bons rapazes” durante os 14 anos que durou o conflito colonial, é uma outra mentira que nenhum de nós que o viveu de perto e tenha consciência da realidade, acredita, apesar das Políticas de Acção Psico-Social desenvolvidas já no final do conflito e que tinham um objectivo político bem definido e internacionalmente bem encenado.
Tal como as “Cruzadas” ou as “Descobertas”, que não foram nenhuns “passeios evangelizadores” mas invasões férteis em massacres para submeter os ditos povos “infiéis”, a Guerra Colonial também foi palco de comportamentos menos dignos por parte de algumas das nossas tropas, que na convivência diária com aqueles povos colonizados se utilizaram da falsa “superioridade da raça branca” para lhes impor (mesmo que em situações menores do seu dia a dia) a submissão, a humilhação, o roubo e o massacre indiscriminado de populações indefesas nos ataques às bases da FRELIMO, ou a prisão indiscriminada de elementos das populações nos vários aldeamentos (sempre coordenados por agentes da PIDE) a pretexto de colaborarem com os movimentos de libertação.
Para termos a noção de uma realidade que alguns fingem esquecer, quem não se recorda das várias incursões efectuadas de noite aos aldeamentos (que não eram mais do que meros campos de concentração onde o exército português acantonava as populações retiradas das matas para impedir que estas apoiassem a FRELIMO) para se roubarem galinhas ou cabritos para tornar o rancho bem mais melhorado, sob o protesto das populações, que tinham que se submeter perante a exibição bélica dos militares?
Será que todos nós já estamos esquecidos da humilhação a que submetíamos os nossos Mainatos[1] que na hora da refeição nos fixavam de olhar faminto, na esperança de que sobrasse algum alimento dos nossos pratos, esperança essa frustrada, quando alguém atirava o prato já vazio na sua direcção, dizendo:
― Vá lá Turra[2] d’um cabrão, o que é que estás à espera para ires lavar essa merda? Ou atirar uma lata de atum já vazia para o meio de um amontoado de crianças que, não sabendo estar a ser enganadas, se guerreavam na ânsia de ali encontrar algo para saciar a fome, enquanto os soldados se pavoneavam rindo à gargalhada perante aquele espectáculo degradante.
Quantas vezes o salário destes Mainatos não foi pago (e isto acontecia com bastante frequência) a pretexto de que a roupa não foi bem lavada e no tempo exigido, ou devido à ausência de um botão (que era arrancado intencionalmente na véspera) para justificar a recusa do pagamento daquele salário.
Quantas mulheres não foram violadas nos aldeamentos com o cano da G3 apontada à cabeça, enquanto outros soldados consumavam a violação colectiva?
Quantos guerrilheiros da FRELIMO depois de aprisionados após terem efectuado uma emboscada às nossas tropas, não foram brutalmente mortos mesmo ali na mata, num acto de desespero e de vingança por um dos nossos camaradas ter falecido nesse confronto?
Quantas crianças indefesas não foram abatidas a sangue frio nos ataques das nossas tropas às bases da FRELIMO, só porque aquelas (ao serem levadas como prisioneiras) seriam um empecilho à progressão e concretização da operação em curso?
Quem não se recorda de ouvir dizer que os guerrilheiros da FRELIMO capturados na mata, eram metidos nos helicópteros (supostamente para serem enviados para as prisões no sul de Moçambique) mas que a PIDE, em pleno oceano Índico, os atirava borda fora com as mãos e os pés atados, sob o olhar incrédulo e de reprovação dos pilotos, enquanto os Pides se justificavam:
― A porta abriu-se e o filho da puta do “Turra” caiu ao mar.
Quantos de nós (influenciados pela propaganda do regime) passámos a admirar a figura do Mercenário Daniel Roxo alcunhando-o de “O terror dos Turras” e, inspirados nas suas façanhas ditas heróicas, nos tornámos (à sua semelhança) mais “guerrilheiros”, apesar de sabermos (e até achávamos isso normal) que as suas milícias utilizavam requintes de malvadez nos métodos de tortura (proibidos pela Convenção de Genebra) sobre os guerrilheiros da FRELIMO capturados, serviços aliás, que, com o fim da Guerra Colonial (como Mercenário que era e a soldo de quem lhe pagasse melhor) os colocou à disposição do regime da África do Sul no tempo do Apartheid na sua ofensiva contra Angola, onde veio a falecer.
Enfim! E como todos nós ainda estamos lembrados, as humilhações com o objectivo de diminuir e enxovalhar socialmente o próximo não eram somente dirigidas às populações nativas pelos soldados dos ramos das forças armadas que conviviam mais próximo das populações, mas também, (por incompreensível que pareça) era prática corrente também entre as nossas tropas devido à rivalidade (fomentada pelo regime) existente entre as ditas “tropas especiais”[3] e as ditas “tropas normais”[4], chamando aquelas a estas (naquela sua vaidosa pose sempre arrogante e excessivamente militarista) de “tropa macaca”.
Apesar de serem alvo daquele adjectivo depreciativo com o objectivo nítido de as humilhar, era no entanto a “tropa macaca” que sempre no mato passava os maiores sofrimentos com os ataques constantes dos guerrilheiros aos seus aquartelamentos, que convivia diariamente com o rebentamento de minas anti-carro e com as emboscadas durante os patrulhamentos e as colunas de reabastecimento nas picadas, com as consequências bem dramáticas que resultavam desse confronto constante e diário.
As ditas “tropas especiais” (que numa vaidade extrema tinham logo como imediata preocupação ajustar a sua farda ao corpo para, por um lado, exibirem a sua pose atlética mas também (e isso era uma preocupação constante) para se distinguirem da tal “tropa macaca”), eram tropas que regra geral estavam aquarteladas nas cidades (Porto Amélia, Nampula, Montepuez e Beira) num relativo conforto (se comparado com as restantes tropas que passavam todo o seu tempo no mato) eram melhor alimentadas e mais bem pagas.
Quando iam para o mato (depois de alguns meses de descanso a que as outras tropas não tinham direito) e eram enviadas em operações, nalgumas destas nem sequer tinham contacto com os guerrilheiros da FRELIMO, dado que estes, depois de terem massacrado as tropas “ditas normais” durante todo o ano, abandonavam as pequenas bases no interior de Moçambique e se refugiavam na Tanzânia, logo que sabiam da intervenção na sua zona daquelas tropas “ditas especiais”.
Depois de concluída a operação, aquelas tropas voltavam de novo para a cidade para mais um período de “merecido descanso” (enquanto a dita “tropa macaca” continuava “encafuada” nos mais recônditos aquartelamentos durante toda a comissão) onde aproveitavam para contar histórias rocambolescas para evidenciar o seu heroísmo e alimentar a sua vaidade, quando nem sequer em algumas destas operações alguns deles tiveram qualquer contacto com o inimigo.
Para além destas questões aparentemente menores mas que revelam bem o comportamento chauvinista da maioria dos nossos soldados no período colonial (sejam eles de que ramo fossem) será bom não esquecermos (no caso de Moçambique) os massacres de Wiryamu em 16 de Dezembro de 1972, onde foram mortas indiscriminadamente 400 pessoas entre mulheres e crianças sendo este acto condenado a nível internacional. Dos massacres de Inhaminga efectuados pelas nossas tropas em Agosto de 1973 e Março de 1974 e dos massacres de Mucumbura, para de facto reconhecermos “que nem sempre fomos bons rapazes” no nosso relacionamento com os povos que colonizámos, como querem fazer crer alguns ex-combatentes com o objectivo de branquear a história, como se a nossa presença em África tivesse sido uma “missão evangelizadora”, só porque ficaram embevecidos com as Acções Psico-Sociais levadas a cabo já no final do conflito colonial, acções estas que tinham um único objectivo; cativar as populações com a construção de aldeamentos e a oferta de outras benesses que não passavam de meras “bugigangas”, e afastá-las do apoio à FRELIMO.
É certo que estávamos em guerra, e no meio da emoção e do ambiente dramático que muitos de nós vivíamos (longe da família), sempre na incerteza do dia seguinte, reconheço que muita coisa (consciente ou inconscientemente e de que muitos de nós estaremos hoje arrependidos de o ter feito) foi feita debaixo da angústia e da raiva por ver um ou mais companheiros nossos tombados em combate, ou devido ao isolamento a que muitas tropas foram sujeitas em Aquartelamentos sem o mínimo de condições de habitabilidade, mas também às perturbações emocionais de que muitos soldados foram vítimas por terem estado durante muito tempo sujeitos a intensos combates que lhes abalou a racionalidade, lhes toldou a consciência, danos que muitos ex-combatentes infelizmente ainda hoje padecem, passados que são quase quarenta anos do fim daquele conflito de má memória.
Eu reconheço que é polémico falar sobre estas questões, e que muitos dos ex-combatentes, apesar de reconhecerem a veracidade das mesmas, preferem ignorá-las, mas negar ou tentar esconder a existência destes comportamentos por parte das nossas tropas no período da Guerra Colonial não é sério nem ajuda a construir a história que se pretende isenta e factual, nem tão pouco as manifestações “patrioteiras” de alguns ex-combatentes (que se aproveitaram das declarações infelizes daquele escritor para exibirem o seu fervor colonialista mais primário) contribuem ou ajudam a que as novas gerações percebam o que de facto estava em jogo nas matas densas de África, nas três frentes de batalha, na Guiné, em Angola e Moçambique, onde de facto (e isso tenhamos que reconhecer) ficou mais que provado de que “nem sempre fomos bons rapazes”.
Algumas daquelas declarações poderão não ser totalmente verdade mas evidenciam e contêm um pouco da realidade e do ambiente que se vivia no período colonial, não só nas cidades mas também nos locais mais recônditos onde as nossas tropas estavam aquarteladas.
No momento mais “escaldante” desta controvérsia, apenas fui observando as diversas manifestações vindas das mais variadíssimas proveniências, mantendo-me à distância das mesmas para as poder analisar à luz da minha experiência também como ex-combatente da Guerra Colonial, mais concretamente nos Aquartelamentos de Nangade, Tartibo, Pundanhar, Muidine e Palma, todos em Cabo Delgado, norte de Moçambique, nas margens do rio Rovuma junto da fronteira com a Tanzânia.
Tal como as declarações proferidas por aquele escritor, confesso que também fiquei bastante impressionado e estranhei a forma como alguns ex-combatentes reagiram às mesmas, com declarações pinceladas de um “patriotismo balofo”, como se ignorassem ou fingissem ter esquecido o comportamento da maioria dos nossos soldados para com as populações nativas durante o conflito colonial.
A descrição feita por António Lobo Antunes sobre o comportamento das nossas tropas pode não corresponder totalmente à realidade, mas “que nem sempre fomos bons rapazes” é uma verdade inquestionável que nenhum ex-combatente ousa desmentir, mesmo que isso ainda hoje lhe corroa a consciência.
A grande maioria das nossas tropas (e não faz mal nenhum reconhecer este facto) era oriunda dos meios rurais, de fraca escolaridade, incultas, “embrutecidas” pelos discursos e as ladainhas dos párocos da aldeia, sendo educados desde tenra idade com uma visão da guerra colonial decalcada dos catecismos do regime.
Chegados a África, confrontados com uma população que o regime lhes disse ser inferior e os seus guerrilheiros classificados como terroristas, era natural ver os nossos soldados no seu relacionamento com as populações a exibirem a sua pose de superioridade, mesmo que vinda de um simples trabalhador rural ou de um daqueles emigrantes que na procura de uma vida melhor vegetou nos bidon-vile’s em terras de França e que, sem qualquer superioridade moral para humilhar aqueles povos de cor de pele diferente, os tratavam com alguma arrogância, indiferença ou desprezo, como se fossem seres inferiores.
Embora houvesse excepções (talvez uma minoria pouco expressiva com alguma consciência política) fazer crer que “fomos todos bons rapazes” durante os 14 anos que durou o conflito colonial, é uma outra mentira que nenhum de nós que o viveu de perto e tenha consciência da realidade, acredita, apesar das Políticas de Acção Psico-Social desenvolvidas já no final do conflito e que tinham um objectivo político bem definido e internacionalmente bem encenado.
Tal como as “Cruzadas” ou as “Descobertas”, que não foram nenhuns “passeios evangelizadores” mas invasões férteis em massacres para submeter os ditos povos “infiéis”, a Guerra Colonial também foi palco de comportamentos menos dignos por parte de algumas das nossas tropas, que na convivência diária com aqueles povos colonizados se utilizaram da falsa “superioridade da raça branca” para lhes impor (mesmo que em situações menores do seu dia a dia) a submissão, a humilhação, o roubo e o massacre indiscriminado de populações indefesas nos ataques às bases da FRELIMO, ou a prisão indiscriminada de elementos das populações nos vários aldeamentos (sempre coordenados por agentes da PIDE) a pretexto de colaborarem com os movimentos de libertação.
Para termos a noção de uma realidade que alguns fingem esquecer, quem não se recorda das várias incursões efectuadas de noite aos aldeamentos (que não eram mais do que meros campos de concentração onde o exército português acantonava as populações retiradas das matas para impedir que estas apoiassem a FRELIMO) para se roubarem galinhas ou cabritos para tornar o rancho bem mais melhorado, sob o protesto das populações, que tinham que se submeter perante a exibição bélica dos militares?
Será que todos nós já estamos esquecidos da humilhação a que submetíamos os nossos Mainatos[1] que na hora da refeição nos fixavam de olhar faminto, na esperança de que sobrasse algum alimento dos nossos pratos, esperança essa frustrada, quando alguém atirava o prato já vazio na sua direcção, dizendo:
― Vá lá Turra[2] d’um cabrão, o que é que estás à espera para ires lavar essa merda? Ou atirar uma lata de atum já vazia para o meio de um amontoado de crianças que, não sabendo estar a ser enganadas, se guerreavam na ânsia de ali encontrar algo para saciar a fome, enquanto os soldados se pavoneavam rindo à gargalhada perante aquele espectáculo degradante.
Quantas vezes o salário destes Mainatos não foi pago (e isto acontecia com bastante frequência) a pretexto de que a roupa não foi bem lavada e no tempo exigido, ou devido à ausência de um botão (que era arrancado intencionalmente na véspera) para justificar a recusa do pagamento daquele salário.
Quantas mulheres não foram violadas nos aldeamentos com o cano da G3 apontada à cabeça, enquanto outros soldados consumavam a violação colectiva?
Quantos guerrilheiros da FRELIMO depois de aprisionados após terem efectuado uma emboscada às nossas tropas, não foram brutalmente mortos mesmo ali na mata, num acto de desespero e de vingança por um dos nossos camaradas ter falecido nesse confronto?
Quantas crianças indefesas não foram abatidas a sangue frio nos ataques das nossas tropas às bases da FRELIMO, só porque aquelas (ao serem levadas como prisioneiras) seriam um empecilho à progressão e concretização da operação em curso?
Quem não se recorda de ouvir dizer que os guerrilheiros da FRELIMO capturados na mata, eram metidos nos helicópteros (supostamente para serem enviados para as prisões no sul de Moçambique) mas que a PIDE, em pleno oceano Índico, os atirava borda fora com as mãos e os pés atados, sob o olhar incrédulo e de reprovação dos pilotos, enquanto os Pides se justificavam:
― A porta abriu-se e o filho da puta do “Turra” caiu ao mar.
Quantos de nós (influenciados pela propaganda do regime) passámos a admirar a figura do Mercenário Daniel Roxo alcunhando-o de “O terror dos Turras” e, inspirados nas suas façanhas ditas heróicas, nos tornámos (à sua semelhança) mais “guerrilheiros”, apesar de sabermos (e até achávamos isso normal) que as suas milícias utilizavam requintes de malvadez nos métodos de tortura (proibidos pela Convenção de Genebra) sobre os guerrilheiros da FRELIMO capturados, serviços aliás, que, com o fim da Guerra Colonial (como Mercenário que era e a soldo de quem lhe pagasse melhor) os colocou à disposição do regime da África do Sul no tempo do Apartheid na sua ofensiva contra Angola, onde veio a falecer.
Enfim! E como todos nós ainda estamos lembrados, as humilhações com o objectivo de diminuir e enxovalhar socialmente o próximo não eram somente dirigidas às populações nativas pelos soldados dos ramos das forças armadas que conviviam mais próximo das populações, mas também, (por incompreensível que pareça) era prática corrente também entre as nossas tropas devido à rivalidade (fomentada pelo regime) existente entre as ditas “tropas especiais”[3] e as ditas “tropas normais”[4], chamando aquelas a estas (naquela sua vaidosa pose sempre arrogante e excessivamente militarista) de “tropa macaca”.
Apesar de serem alvo daquele adjectivo depreciativo com o objectivo nítido de as humilhar, era no entanto a “tropa macaca” que sempre no mato passava os maiores sofrimentos com os ataques constantes dos guerrilheiros aos seus aquartelamentos, que convivia diariamente com o rebentamento de minas anti-carro e com as emboscadas durante os patrulhamentos e as colunas de reabastecimento nas picadas, com as consequências bem dramáticas que resultavam desse confronto constante e diário.
As ditas “tropas especiais” (que numa vaidade extrema tinham logo como imediata preocupação ajustar a sua farda ao corpo para, por um lado, exibirem a sua pose atlética mas também (e isso era uma preocupação constante) para se distinguirem da tal “tropa macaca”), eram tropas que regra geral estavam aquarteladas nas cidades (Porto Amélia, Nampula, Montepuez e Beira) num relativo conforto (se comparado com as restantes tropas que passavam todo o seu tempo no mato) eram melhor alimentadas e mais bem pagas.
Quando iam para o mato (depois de alguns meses de descanso a que as outras tropas não tinham direito) e eram enviadas em operações, nalgumas destas nem sequer tinham contacto com os guerrilheiros da FRELIMO, dado que estes, depois de terem massacrado as tropas “ditas normais” durante todo o ano, abandonavam as pequenas bases no interior de Moçambique e se refugiavam na Tanzânia, logo que sabiam da intervenção na sua zona daquelas tropas “ditas especiais”.
Depois de concluída a operação, aquelas tropas voltavam de novo para a cidade para mais um período de “merecido descanso” (enquanto a dita “tropa macaca” continuava “encafuada” nos mais recônditos aquartelamentos durante toda a comissão) onde aproveitavam para contar histórias rocambolescas para evidenciar o seu heroísmo e alimentar a sua vaidade, quando nem sequer em algumas destas operações alguns deles tiveram qualquer contacto com o inimigo.
Para além destas questões aparentemente menores mas que revelam bem o comportamento chauvinista da maioria dos nossos soldados no período colonial (sejam eles de que ramo fossem) será bom não esquecermos (no caso de Moçambique) os massacres de Wiryamu em 16 de Dezembro de 1972, onde foram mortas indiscriminadamente 400 pessoas entre mulheres e crianças sendo este acto condenado a nível internacional. Dos massacres de Inhaminga efectuados pelas nossas tropas em Agosto de 1973 e Março de 1974 e dos massacres de Mucumbura, para de facto reconhecermos “que nem sempre fomos bons rapazes” no nosso relacionamento com os povos que colonizámos, como querem fazer crer alguns ex-combatentes com o objectivo de branquear a história, como se a nossa presença em África tivesse sido uma “missão evangelizadora”, só porque ficaram embevecidos com as Acções Psico-Sociais levadas a cabo já no final do conflito colonial, acções estas que tinham um único objectivo; cativar as populações com a construção de aldeamentos e a oferta de outras benesses que não passavam de meras “bugigangas”, e afastá-las do apoio à FRELIMO.
É certo que estávamos em guerra, e no meio da emoção e do ambiente dramático que muitos de nós vivíamos (longe da família), sempre na incerteza do dia seguinte, reconheço que muita coisa (consciente ou inconscientemente e de que muitos de nós estaremos hoje arrependidos de o ter feito) foi feita debaixo da angústia e da raiva por ver um ou mais companheiros nossos tombados em combate, ou devido ao isolamento a que muitas tropas foram sujeitas em Aquartelamentos sem o mínimo de condições de habitabilidade, mas também às perturbações emocionais de que muitos soldados foram vítimas por terem estado durante muito tempo sujeitos a intensos combates que lhes abalou a racionalidade, lhes toldou a consciência, danos que muitos ex-combatentes infelizmente ainda hoje padecem, passados que são quase quarenta anos do fim daquele conflito de má memória.
Eu reconheço que é polémico falar sobre estas questões, e que muitos dos ex-combatentes, apesar de reconhecerem a veracidade das mesmas, preferem ignorá-las, mas negar ou tentar esconder a existência destes comportamentos por parte das nossas tropas no período da Guerra Colonial não é sério nem ajuda a construir a história que se pretende isenta e factual, nem tão pouco as manifestações “patrioteiras” de alguns ex-combatentes (que se aproveitaram das declarações infelizes daquele escritor para exibirem o seu fervor colonialista mais primário) contribuem ou ajudam a que as novas gerações percebam o que de facto estava em jogo nas matas densas de África, nas três frentes de batalha, na Guiné, em Angola e Moçambique, onde de facto (e isso tenhamos que reconhecer) ficou mais que provado de que “nem sempre fomos bons rapazes”.
Carlos Vardasca
17 de Setembro de 2010
[1] Crianças dos aldeamentos que iam buscar as nossas roupas para serem lavadas pelas mães ou pelas irmãs mais velhas.
[2] Adjectivo que deriva do diminutivo de terrorista.
[3] Unidades militares compostas por tropas Pára-quedistas, Comandos e de Fuzileiros.
[4] Unidades do exército compostas por Batalhões ou Companhias Operacionais de Caçadores, de Artilharia e de Cavalaria.
Foto: Dois guerrilheiros da FRELIMO capturados, aguardam em Nangade para serem transferidos para a prisão, sob o olhar atento de um agente da PIDE (de costas) que era presença permanente naquele Aquartelamento no norte de Moçambique. Nangade 1971.