Éramos todos ainda muitos meninos, folheando uma qualquer página dos nossos livros da escola, quando em África os ventos da revolta começaram a soprar.
Dos que tiveram o privilégio de brincar com brinquedos a sério, aos que dos restos dos outros souberam improvisar a gancheta e o arco; o carrinho de rolamentos; o jogo das caricas e dos bugalhos, até aos que sem infância tão rápido se tornaram homens e do arado moldaram as terras, a todos nos parecia estarmos a crescer muito devagar para que a guerra ainda nos apanhasse de soslaio.
Dos bancos da escola até ao primeiro namoro no adro da igreja, a todos nós sempre nos era dito que quando chegasse a nossa vez já aquilo em África tinha findado há muito.
Apesar de tudo, e enquanto a nossa juventude nos foi escapando enleada em incertezas, inesperadamente, foi chegado o momento em que o carteiro nos trouxe aquele papel timbrado, que nos dizia já sermos homens e ser a altura para abandonarmos o aconchego familiar.
Na recruta, encafuados naqueles casebres feitos casernas depois de termos sido expulsos do lar, suportámos a brutalidade e a arrogância de certos instrutores que diziam ser necessária aquela agressividade para nos tornarmos bons combatentes, fomos, apesar de tudo, mantendo os nossos sorrisos de infância e recordámos as brincadeiras que não tivéramos tempo de brincar em criança, embora já nos tivessem transformado em “meninos soldados”.
Enviados para a guerra, onde convivemos diariamente com a angústia e a incerteza, mas também com a perca de alguém com quem partilhámos os medos e as várias faces dos silêncios; a última gota de água do cantil; a mesma frescura do capim, os sorrisos aos poucos foram-se desvanecendo e os nossos olhares toldaram-se de raiva, tornaram-se frios, distantes, absurdamente melancólicos e, obviamente muito tristes.
Cada momento vivido no isolamento do interior da mata; da felicidade vivida em momentos tão raros que logo se desvanecia nos ataques constantes aos aquartelamentos; da sensação de alívio por se ter escapado a uma emboscada ou à impaciência pela chegada do helicóptero e à desilusão por uma carta que nunca chegava, todos estes momentos foram moldando cada uma das nossas expressões, como quem desconfia que fora enviado para ali para morrer.
Regressados da guerra e com alguns companheiros “deixados para trás”, de regresso às aldeias e às cidades que nos viram partir ainda meninos, alguns dos nossos olhares distantes pareciam não querer reconhecer quem nos amou à distância, apesar dos abraços apertados e das nossas lágrimas que caiam nos ombros de quem nos abraçava.
Vivendo constantemente em sobressalto, recriando cenários de guerra intensamente vividos mesmo que estes há muito já estivessem distantes; reagindo aos carinhos de quem nos amava com a agressividade inconsciente de quem se sentia constantemente ameaçado; sem capacidade para compreender (e ser compreendido) que todo aquele comportamento fora adquirido em clima de guerra e tinha uma causa, um nome (stress de guerra pós traumático) muitos, involuntariamente, fomos deixando morrer aquilo que mais ansiávamos, quando no fundo dos abrigos e à luz de uma vela delineámos outros planos e que agora os sentíamos escapar, sem que os nossos olhares tristes sentissem a força suficiente para os conseguir agarrar.
Incompreendidos pela família (que sem ter vivido a guerra com ela foi obrigada a conviver diariamente os seus sobressaltos, ano após ano, até à ruptura conjugal) pelos governos que nos ignorou e pela sociedade que nos olhava de lado como se nós tivéssemos sido os verdadeiros colonialistas, vimos muitos dos nossos companheiros a serem atirados para a marginalidade, fazendo agora novos amigos, vegetando pelas arcadas do Terreiro do Paço feitos sem-abrigo, partilhando com outros de igual sorte a sua condição a quem contavam as suas mágoas, confortando-se mutuamente sem esperar nada em troca, até que o suicídio lhes arrancasse o último pedaço das suas vidas.
É este o drama muitas vezes escondido de muitos daqueles a quem foi dito “que a pátria estava em perigo” e a quem se exigiu que dissessem logo presente, sem olhar a quem, e que ainda hoje vivem desprezados por essa mesma pátria que os pariu e que deles se serviu para logo os esquecer e os “atirar para a berma da estrada”.
Se tomarmos bem consciência do quanto nos afectou aquele período colonial e embora muitos de nós não fossemos atingidos por aqueles dramas, apesar de termos partilhado os mesmos medos, de uma coisa temos todos a certeza: ― Nenhum de nós voltou a ser o que era e, sem nos darmos conta, “Regressámos todos tão diferentes”.
Carlos Vardasca
22 de Novembro de 2010
Dos que tiveram o privilégio de brincar com brinquedos a sério, aos que dos restos dos outros souberam improvisar a gancheta e o arco; o carrinho de rolamentos; o jogo das caricas e dos bugalhos, até aos que sem infância tão rápido se tornaram homens e do arado moldaram as terras, a todos nos parecia estarmos a crescer muito devagar para que a guerra ainda nos apanhasse de soslaio.
Dos bancos da escola até ao primeiro namoro no adro da igreja, a todos nós sempre nos era dito que quando chegasse a nossa vez já aquilo em África tinha findado há muito.
Apesar de tudo, e enquanto a nossa juventude nos foi escapando enleada em incertezas, inesperadamente, foi chegado o momento em que o carteiro nos trouxe aquele papel timbrado, que nos dizia já sermos homens e ser a altura para abandonarmos o aconchego familiar.
Na recruta, encafuados naqueles casebres feitos casernas depois de termos sido expulsos do lar, suportámos a brutalidade e a arrogância de certos instrutores que diziam ser necessária aquela agressividade para nos tornarmos bons combatentes, fomos, apesar de tudo, mantendo os nossos sorrisos de infância e recordámos as brincadeiras que não tivéramos tempo de brincar em criança, embora já nos tivessem transformado em “meninos soldados”.
Enviados para a guerra, onde convivemos diariamente com a angústia e a incerteza, mas também com a perca de alguém com quem partilhámos os medos e as várias faces dos silêncios; a última gota de água do cantil; a mesma frescura do capim, os sorrisos aos poucos foram-se desvanecendo e os nossos olhares toldaram-se de raiva, tornaram-se frios, distantes, absurdamente melancólicos e, obviamente muito tristes.
Cada momento vivido no isolamento do interior da mata; da felicidade vivida em momentos tão raros que logo se desvanecia nos ataques constantes aos aquartelamentos; da sensação de alívio por se ter escapado a uma emboscada ou à impaciência pela chegada do helicóptero e à desilusão por uma carta que nunca chegava, todos estes momentos foram moldando cada uma das nossas expressões, como quem desconfia que fora enviado para ali para morrer.
Regressados da guerra e com alguns companheiros “deixados para trás”, de regresso às aldeias e às cidades que nos viram partir ainda meninos, alguns dos nossos olhares distantes pareciam não querer reconhecer quem nos amou à distância, apesar dos abraços apertados e das nossas lágrimas que caiam nos ombros de quem nos abraçava.
Vivendo constantemente em sobressalto, recriando cenários de guerra intensamente vividos mesmo que estes há muito já estivessem distantes; reagindo aos carinhos de quem nos amava com a agressividade inconsciente de quem se sentia constantemente ameaçado; sem capacidade para compreender (e ser compreendido) que todo aquele comportamento fora adquirido em clima de guerra e tinha uma causa, um nome (stress de guerra pós traumático) muitos, involuntariamente, fomos deixando morrer aquilo que mais ansiávamos, quando no fundo dos abrigos e à luz de uma vela delineámos outros planos e que agora os sentíamos escapar, sem que os nossos olhares tristes sentissem a força suficiente para os conseguir agarrar.
Incompreendidos pela família (que sem ter vivido a guerra com ela foi obrigada a conviver diariamente os seus sobressaltos, ano após ano, até à ruptura conjugal) pelos governos que nos ignorou e pela sociedade que nos olhava de lado como se nós tivéssemos sido os verdadeiros colonialistas, vimos muitos dos nossos companheiros a serem atirados para a marginalidade, fazendo agora novos amigos, vegetando pelas arcadas do Terreiro do Paço feitos sem-abrigo, partilhando com outros de igual sorte a sua condição a quem contavam as suas mágoas, confortando-se mutuamente sem esperar nada em troca, até que o suicídio lhes arrancasse o último pedaço das suas vidas.
É este o drama muitas vezes escondido de muitos daqueles a quem foi dito “que a pátria estava em perigo” e a quem se exigiu que dissessem logo presente, sem olhar a quem, e que ainda hoje vivem desprezados por essa mesma pátria que os pariu e que deles se serviu para logo os esquecer e os “atirar para a berma da estrada”.
Se tomarmos bem consciência do quanto nos afectou aquele período colonial e embora muitos de nós não fossemos atingidos por aqueles dramas, apesar de termos partilhado os mesmos medos, de uma coisa temos todos a certeza: ― Nenhum de nós voltou a ser o que era e, sem nos darmos conta, “Regressámos todos tão diferentes”.
Carlos Vardasca
22 de Novembro de 2010
Foto: Regresso de tropas de Moçambique a bordo do "Vera Cruz". Lisboa 1971
1 comentário:
FELIZ NATAL
Formulo votos sinceros para todos os combatentes do BATALHÃO DE CAÇADORES 3834, e COMPANHIAS de CAÇADORES 3309/ 3310/ 3311/ e a todos os seus familiares.
E em ESPECIAL, para o meu grande amigo,CARLOS VARDASCA, de que tenho noticias todos os dias no seu blog, que todos os dias registo o nº de visitas no blog que já vai em 31996 emm 3 de DEZEMBRO.
UM ABRAÇO PARA TI, do amigo ANTÓNIO FILIPE PINHO SOUSA EX: ENF.DA COMPANHIA 3311
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