sexta-feira, 5 de setembro de 2008

"Na rota dos afectos, ou como o tempo se encarrega de nos aniquilar"




Rumo a norte, com o objectivo de "vasculhar" todos os recantos onde a beleza se esconde por entre o arvoredo, que se apoquenta ao mais pequeno sinal de aproximação de algo que lhe traga ventos de urbanidade, lá fui visitando alguns dos meus "companheiros de armas" que por acaso se "atravessavam no caminho", delineado por uma rota traçada no mapa onde o destino era saboreado de improviso.
É certo que todos os anos nos Encontros da nossa Companhia lá os vejo (alguns deles), mas desta vez fui visitá-los no seu recanto familiar, onde o sabor da amizade tem outro travo, regado com o verde tinto, a mesa farta temperada pelo abraço forte que nos faz recordar os momentos vividos naquelas terras banhadas pelo Índico e que só quem por lá andou os pode compreender. Estive em S. João da Madeira com o Almeida (1), acompanhei o Arteiro (2) na sua tradicional caminhada durante uma hora na marginal da vila piscatória de Caxinas (Vila do Conde) para tentar manter a forma adquirida no ginásio mas que fui traindo ao saborear as várias iguarias que se consomem naquela região. Cada vez mais a norte e depois de ter passado por Viana do Castelo, Caminha, Vila Nova de Cerveira e Valença (depois de uma breve incursão pela Galiza) lá estive também por breves momentos em Monção com o Alfredo Ruivo (3).
Tal como todos os camaradas que visitei e que me receberam em ambiente familiar e de uma forma bastante afectuosa, o Alfredo Ruivo (de alcunha o "Monção") também me convidou para lá pernoitar ao qual lhe estou extremamente agradecido, mas que desta vez recusei, não por qualquer outro motivo mas simplesmente relacionado com o estado debilitado da sua saúde que me comoveu profundamente, e que me impedia de suster as lágrimas de cada vez que o olhava, "embrulhado" na sua tristeza por não poder partilhar a alegria daquele momento e que se sentia pulsar dentro de si.
O Alfredo Ruivo, ex-combatente, ex-empresário da construção civil mas bastante debilitado devido a uma doença que lhe "amputou o futuro", mantém-se de pé à custa de umas "canadianas" onde faz algum esforço para se equilibrar, vive actualmente com uma mísera pensão de 382 Euros mensais, "magro salário que se perde na profundidade dos seus bolsos e na angústia de se sentir esquecido pela pátria que o pariu".
Sempre com a imagem do "Monção" a perturbar-me, iniciei a viagem de regresso ao sul sem que antes tivesse visitado o Gonçalves (4) em Macieira da Lixa e o Eugénio (5) em Silvares (Fafe), onde também ali convivi com o desespero do desemprego personificado pelo encerramento das fábricas de confecções de meias, que atirou este último e sua mulher para uma situação de desemprego permanente, recebendo ambos uma reforma de miséria.
Habituado a passar férias em outras paragens, desta vez por opção rumei a norte a que chamei "na rota dos afectos", mas onde também observei "como é que o tempo se encarrega de nos aniquilar" sem que esse mesmo tempo nos pergunte se o pode fazer sem a nossa permissão.

Carlos Vardasca
05 de Setembro de 2008

Foto 1: Eu e a Odília em S. João da Madeira com o Almeida e família.
Foto 2: Eu e a Odília em Caxinas com o Arteiro e esposa. (Na foto está a esposa do Almeida).
Foto 3: Em Monção com o Alfredo Ruivo ("Monção").
Foto 4: Em Macieira da Lixa com o Eugénio ("Fafe") e o Gonçalves ("Lixa")
(1) António Pinto de Almeida, ex-Soldado Condutor NM 15777070 da C.CAÇ. 3309
(2) João da Silva Arteiro, ex-Soldado Condutor NM 15393470 da C.CAÇ. 3309
(3) Alfredo Ruivo Campos ("Monção"), ex-Soldado Atirador NM 10786270 da C.CAÇ. 3309
(4) Manuel Teixeira Gonçalves ("Lixa"), ex-Soldado Condutor NM 17679170 da C.CAÇ. 3309
(5) Eugénio de Sousa Fernandes ("Fafe"), ex-Soldado Apontador de Metralhadora NM 11119370 da C.CAÇ. 3309





domingo, 17 de agosto de 2008

"No meu prédio também moram andorinhas"


Parecia estar exausta. Quando lhe peguei, não fez o mínimo gesto para fugir, parecendo mais assustada por mãos estranhas a envolverem sem entender para onde a levavam.
Era uma andorinha jovem e estava caída no passeio da minha rua, parecendo estranho ainda ali permanecer quando por aquele empedrado vagueiam alguns gatos e cães, também eles esfomeados e sem abrigo à procura de um recanto para dormir.
Peguei nela e levei-a para minha casa, improvisando na minha varanda um ninho à semelhança daquele de onde provavelmente teria caído, com duas tigelas sobrepostas, onde a Mafalda geralmente come os cereais, deixando uma pequena abertura na eventualidade da jovem andorinha querer sair depois de recuperada.
Por mera curiosidade, coloquei-lhe numa das patas uma pequena anilha amarela, para na eventualidade de a poder observar numa outra circunstância no seu vai e vem do ciclo migratório.
Sem forças, deitei-a dentro da tigela que envolvi com trapos para se tornar mais acolhedor, enquanto me entretia a apanhar moscas e outros insectos que colocava ao seu lado na companhia de pequenos pedaços de pão.
Por duvidar da sua capacidade de se alimentar, por vezes abria-lhe o bico, dando-lhe de beber e alimentando-a até que me pareceu nada mais querer, quando já a noite se tinha abatido sobre Alhos Vedros e a lua parecia ter ancorado no seu cais.
No dia seguinte, a tigela, promovida provisoriamente à categoria de ninho estava vazia, e no seu interior nada restava dos vários insectos e pedaços de pão ali colocados, tendo a andorinha seguido o seu caminho provavelmente para paragens distantes no norte de África.
Pensei nunca mais a ver, pois, como seria natural, era uma entre tantas andorinhas que no seu ciclo migratório nem sempre regressam ao mesmo sítio.
Este ano, chegada a Primavera, mais uma vez me atarefei a afugentar as andorinhas que teimosamente tentavam fazer o ninho nos recantos da minha varanda.
Ainda no seu início, derrubei por duas vezes um ninho ainda em construção e, perante tanta insistência minha, aquelas andorinhas acabaram por desistir indo fazer o ninho não muito longe dali, mesmo por cima da porta de entrada do prédio onde moro, no entrelaçado dos cabos eléctricos que serpenteiam aquela construção.
Achei curioso a sua teimosia em querer fazer o ninho sempre ali nas proximidades, até que reparei, quando uma delas pousou no parapeito da minha varanda (o que estranhamente passou a fazer com alguma regularidade) que numa das patas ostentava uma pequena anilha amarela, e foi então que compreendi a sua teimosia em querer fazer o ninho próximo do local de onde partira no ano anterior.
Embora não fale, os seus voos rasantes acompanhados por um piar harmonioso quando sobrevoa por cima de mim quando venho à varanda, parecem ser uma singela expressão de gratidão, agradecendo a hospitalidade que lhe foi dispensada num dos momentos trágicos da sua vida, enquanto que no seu redopio alimenta as suas duas crias que parecem já estar preparadas para quando se iniciar a sua primeira aventura na procura de outros locais onde a temperatura é mais acolhedora.
O prédio onde moro (onde se sustenta aquela pequena estrutura de argamassa onde moram agora quatro andorinhas) prepara-se para ficar mais vazio quando as noites frias indicarem que é tempo delas iniciarem a longa marcha, até que as alterações climáticas as tragam de novo à minha rua, onde a gratidão destas aves parece ter ofuscado aquela que alguns humanos há muito riscaram do seu vocabulário.

Carlos Vardasca
17 de Agosto de 2008

Nota: Artigo enviado para o jornal "O RIO", jornal regional e independente do Concelho da Moita.
* Com este artigo sigo para férias e regresso no final de Agosto.

Foi no mesmo dia e em Agosto, mas há 38 anos.


(...) Em 17 de Agosto de 1971, iniciou-se a Operação "OCIDENTE 2", coluna de reabastecimento de Palma a Nangade, efectuada por dois Grupos de Combate da Companhia de Caçadores de Moçimboa da Praia. A coluna chegou a Pundanhar e saiu para Nangade no mesmo dia, tendo ali chegado no dia seguinte. Asseguraram protecção do itinerário 2 Grupos de Combate da Companhia de Caçadores 2703 e dois Grupos de Combate da Companhia de Artilharia 2745.
Os primeiros encontraram na picada panfletos de propaganda do IN (FRELIMO) e os segundos detectaram e destruíram 1 mina anti-carro. Durante esta operação uma Berliet accionou uma mina anti-carro ficando danificada.
Foto 1: Licínio José de Jesus Lopes (de alcunha o "Tremoço") Soldado Condutor Auto Rodas, NM 16985870 da Compania de Caçadores 3309, que ficou ligeiramente ferido após o rebentamento da mina anti-carro nesta coluna de reabastecimento. O "Tremoço" era natural da aldeia da Rasca (Setúbal) e faleceu em Agosto de 1999.
Foto 2: Aquartelamento de Pundanhar onde estava estacionada a Companhia de Caçadores 2703, e onde a Companhia de Caçadores 3309 com regularidade ali ficava estacionada, nos intervalos das suas intervenções na protecção às colunas de reabastecimento ou em operações de patrulhamento.
(In: Relatório da Região Militar de Moçambique. Batalhão de Artilharia 2918. História da Unidade, Décimo terceiro fascículo (Agosto de 1971) Arquivo Histórico Militar de Lisboa).


sábado, 26 de julho de 2008

Nas Mercedes Benz? nem pó! Com elas não saímos para o mato.



(...) A actividade da FRELIMO naquela zona do Planalto dos Macondes eram bastante intensa, ora recorrendo a emboscadas ou à colocação de minas anti-carro nas picadas, sendo rara a coluna de reabastecimento em que uma ou duas Berliet não ficassem destruídas devido às fortes explosões produzidas por aqueles engenhos, com consequências muitas vezes dramáticas para muitos militares que nelas se faziam transportar, principalmente para quem as conduzia que foram as maiores vítimas daquelas armadilhas.
Em Nangade a escassez de viaturas Berliet já se fazia sentir, havendo a necessidade de colmatar aquela situação com a reposição do parque auto com a aquisição de novas viaturas para que as colunas de reabastecimento voltassem à sua normalidade.
Os rumores que já se ouviam nas casernas era que as novas viaturas já não eram Berliet mas Mercedes Benz, o que criou um descontentamento nos Condutores da Companhia de Caçadores 3309 que tinham ficado adidos à CCS de Batalhão de Artilharia 2918, pois eram eles que garantiam a realização das colunas de reabastecimento e participavam na sua condução.
Não era uma questão de marcas que os preocupava, mas tão só as diferenças que tinham um grande significado para quem as conduzia, pois viam a sua tarefa dificultada e a sua vida cada vez mais posta em perigo. Enquanto que às Berliet era possível desmontar as suas capotas (evitando que num rebentamento os condutores batessem com a cabeça na mesma), pára-brisas, portas e assentos, ocupando alguns daqueles espaços com sacos de areia para reduzir o impacto do rebentamento das minas, nas Mercedes Benz não era possível efectuar aquelas alterações nem inicialmente o Tenente Coronel Vasconcelos Porto estava lá muito receptivo a permitir tais modificações.
Quando o Capitão Hélio Moreira da C.CAÇ. 3309 lhe foi transmitir o descontentamento e o desagrado dos seus homens perante tal situação, propondo até uma alternativa (adiantada por eles) que seria serrar os tejadilhos das Mercedes Benz, logo aquele oficial da CCS respondeu bem ao jeito de um oficial do quadro:
- Nem pensar! As viaturas acabaram de chegar e já as vamos destruir arrancando-lhes o tejadilho? - Se tiverem que ser destruídas os Turras que as destruam, mas nós nunca!
- Oh meu capitão - disse o mesmo oficial insistindo:
- Diga lá aos seus soldados que as ordens são para se cumprir e quero-os prontos para quando se realizar a coluna de reabastecimento na próxima semana, pois já quase que não temos abastecimentos em Nangade.
Como o descontentamento se começou a generalizar também aos condutores da CCS, pois temiam também eles ter que conduzir tais viaturas perante a recusa dos condutores da C.CAÇ. 3309, a muito custo e após algumas conversações para desbloquear a situação lá foram as Mercedes Benz para a oficina para lhes ser retirado o tejadilho.
Parece que ainda estou a ouvir o "Tremoço" (1) numa das suas raras manifestações de contentamento quando as viu chegar da oficina:
- "Olha as meninas Mercedes foram ao cabeleireiro e arrancaram-lhes a peruca"!
Dotadas de melhor segurança para quem as conduzia, as Mercedes Benz lá foram para o mato desprovidas do seu tejadilho, sem portas, sendo colocado no seu lugar sacos de areia, tendo sido vencida mais uma batalha (embora quase silenciosa mas eficaz) contra o rigor, a prepotência e a insensibilidade militar de quem estava ali apenas para cumprir mais uma missão ao serviço do regime e "arrecadar mais uns trocos", em oposição aos que para ali foram empurrados sem que daquele pedaço térreo alguma vez tivessem reivindicado algo, embora fossem os guardiões de vastas plantações de algodão, propriedade de quem em Lisboa se "entretinha a abençoar os fiéis e a colaborar com a PIDE para silenciar os protestos" (...)

Carlos Vardasca
26 de Julho de 2008

Foto 1: O Soldado Condutor Gonçalves (Lixa) que incorporou mais tarde a C.CAÇ. 3309 em rendição individual, ao volante de uma Mercedes Benz já com o tejadilho serrado.
Foto 2: Primeira Berliet minada numa das primeiras colunas de reabastecimento sob protecção da Companhia de Caçadores 3309 no itinerário Nangade-Pundanhar (22 de Março de 1971).
(1) Alcunha de Licínio José de Jesus Lopes, Soldado Condutor NM 16985870 da Companhia de Caçadores 3309, natural da aldeia da Rasca (Setúbal) falecido em Agosto de 1999.




domingo, 20 de julho de 2008

"Os amigos que já não voltam"




(...) Decorria o dia 20 de Julho de 1971 e a manhã parecia ir ser igual a tantas outras. Há muito que a C.CAÇ. 3309 partira para Nova Torres (Aquartelamento junto ao rio Rovuma) ficando em Nangade apenas alguns condutores adidos ao Batalhão de Artilharia 2918 para "alinhar" nas colunas de reabastecimento. O Victor (1) (a quem faltava cerca de um mês para ir de férias à "Metrópole") conduzia um Unimog 404 em direcção ao posto das "Águas" situado num vale junto ao rio Litinguinha, na companhia do Sousa (2), 12 machambeiros (3) e um Furriel responsável pela construção da estação de captação das águas que eram bombeadas daquele rio para abastecer o Aquartelamento e as populações de Nangade. A meio do trajecto, (cerca de 1,5 quilómetros) inexplicavelmente e por ser tão próximo do aquartelamento, dá-se um violenta explosão de uma mina anti-carro altamente reforçada colocada pela FRELIMO na noite anterior, cujo cogumelo de fumo parecia ter escurecido todo o vale. De tão negro que era que parecia anunciar algo de trágico, que se veio a confirmar quando um pelotão da Companhia de Artilharia 2745 ali chegou e deparou com aquele cenário.
Espalhados no capim e pela picada, os corpos de oito machambeiros jaziam já inertes, enquanto os restantes agonizavam à espera dos primeiros socorros na companhia do Furriel que tivera apenas ferimentos ligeiros.
O Sousa teve morte imediata. O mesmo não aconteceu ao Victor (embora tivesse o mesmo fim) dado que com a explosão fora projectado para fora da viatura tendo caído no capim sem qualquer ferimento, sendo posteriormente atingido pelo Unimog 404 que devido ao impacto da explosão se elevara no ar indo cair em cima dele esmagando-lhe o corpo causando a sua morte.
A Companhia de Caçadores 3309 estava em Moçambique há apenas cinco meses quando ocorreram estas suas primeiras baixas em combate.
Faz hoje precisamente 37 anos que ocorreram aquelas baixas que muita consternação causaram na C.CAÇ. 3309, ficando aqui para eles (que eram dois bons amigos que já não voltam) um abraço solidário de quem sobreviveu (...)
Carlos Vardasca
20 de Julho de 2008
Foto 1: O Sousa em Nangade e o Victor no Aquartelamento de Nova Torres quando ali se deslocou em coluna de reabastecimento.
Foto 2: Estado em que ficou o Unimog 404 depois de explosão da mina anti-carro.
(1) Victor Manuel da Silva, 1º Cabo Condutor Auto Rodas NM 11694170 da Companhia de Caçadores 3309.
(2) Albino Dias de Sousa, Soldado dos Serviços Gerais NM 07013070 da Companhia de Caçadores 3309.
(3) Trabalhadores agrícolas naturais dos aldeamentos (Macua e Maconde) que ladeavam o Aquartelamento de Nangade.




quinta-feira, 17 de julho de 2008

"Nangade, meu amor"



(...) A guerra também tinha os seu intervalos, embora "o cenário se mantivesse estático, lá no fundo do palco" tal como nos teatros, sempre pronto a levar à cena os horrores da guerra. Nangade (ao contrário dos minúsculos Aquartelamentos como Nova Torres, Tartibo e Muidine por onde deambulou a Companhia de Caçadores 3309, mais parecendo ter sido ali colocada por mero abandono) era um Aquartelamento que oferecia maior segurança. Protegido em todo o seu redor por duas fiadas de arame farpado, com postos de iluminação cuja luz (que era produzida por velhos geradores que pareciam roncar pela noite fora) incidia sobre aquela linha de defesa, Nangade era um Aquartelamento ladeado por dois aldeamentos das etnias Maconde (a norte) e Macua (a sul) que nos ofereciam em dias festivos batuques nocturnos até que pela manhã o cacimbo inundasse os telhados de colmo das palhotas, enquanto alguns soldados adormeciam nos seus alpendres encharcados de "Laurentinas".
De regresso das operações de combate, os soldados tinham à sua disposição chuveiros para desencardir as angústias e sacudirem o pó negro das matas que se entranhara no camuflado e inundara as entranhas, para depois, durante a noite, enquanto uns pareciam dormir um sono eterno, outros, de visita aos aldeamentos, enfiavam-se nas tabancas e aí se saciavam até à exaustão numa orgia prenhe de infidelidades, entrelaçados como as lianas até que o "orgasmo explodisse como uma bola de fogo".
À sua pista de terra batida chegavam com alguma regularidade Táxis Aéreos, DOs, Nord Atlas transportando abastecimentos vários ou tropas para ali enviadas para acções de combate à guerrilha, e outros meios aéreos como os T6 vindos das acções de bombardeamento de zonas controladas pela FRELIMO, assim como formações de helicópteros de transporte de grupos de combate para ataque às suas bases ou de passagem para Mueda transportando feridos ou mortos nessas mesmas acções.
Nangade estava bem defendida em termos de armamento pesado e ligeiro, dispondo de duas anti-aéreas que crivavam o planalto em frente quando a FRELIMO dali atacava com morteiros de 82mm, e vários Obuses 14, que batiam a zona como forma de prevenção ou respondendo a ataques da guerrilha que o fazia com alguma regularidade.
Na loja do Monhé, repleta de "bujigangas" que na falta de melhor nos faziam bastante jeito, amontoavam-se, por entre várias mercadorias, sabonetes Life Boy e frascos de Pó de Talco de má qualidade e do mais rasca do mercado, mas que nos aliviava das assaduras provocadas pelo calor e pelas longas caminhadas no interior da mata, das angustiantes acções de picagem na detecção de minas nas picadas ou dos patrulhamentos ao longo dos itinerários das várias picadas que ligavam os vários Aquartelamentos daquela zona do Planalto dos Macondes.
Foi aqui a Nangade que a C.CAÇ. 3309 chegou em 25 de Fevereiro de 1971 para depois ser tranferida para Nova Torres e mais tarde para Tartibo, voltando àquele Aquartelamento para dele sair em 13 de Novembro de 1972 com histórias bastante dramáticas para contar, depois de ter sido rendida pela Companhia de Artilharia 3506 e rodar para Balama (...)
Carlos Vardasca
17 de Julho de 2008
Foto 1: Os Furriéis Sobral, Neves e Arlindo da Companhia de Caçadores 3309 numa de "acção psicológica" no aldeamento Macua.
Foto 2: Aquartelamento de Nangade
Foto 3: Uma das anti-aéreas que faziam parte das defesas de Nangade.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

"E o inferno ali tão próximo". 14 de Julho de 1971



(...) Na pista de Nangade o som ensurdecedor da formação de helicópteros lembrava que estava em curso uma operação de grande envergadura. Introduzidos nos hélis, os vários pelotões do Batalhão de Caçadores Paraquedistas 31 dirigiram-se para o corredor de infiltração da FRELIMO em território de Moçambique, trilho que passava a alguns quilómetros de Nova Torres e de Muidine, no sentido sul em direcção ao Lago Namioca próximo de Pundunhar, onde a FRELIMO detinha uma pequena base de recepção de material vindo da Tanzãnia. Assaltada a base dos guerrilheiros sem qualquer resultados práticos dado que estes pareciam estar bem informados daquela acção abandonando-a com alguma antecedência, dois pelotões da Companhia de Caçadores 3309 dirigiram-se ao encontro daquela formação de Paraquedistas para os encaminhar em direcção à picada e aí serem recolhidos por uma coluna de reabastecimento que estava prestes a passar no local dirigindo-se para Nangade.
Depois de terem atravessado um lângua extensa e reentrado na mata densa, um grupo numeroso de guerrilheiros da FRELIMO emboscou as nossas tropas com armas automáticas e Lança Granadas foguete (LGF), tendo uma destas granadas atingido no peito um soldado Paraquedista daquele grupo de Combate causando-lhe morte imediata. A mesma emboscada causou ferimentos ligeiros em mais 10 soldados do BCP 31, 1 ferido grave à Companhia de Caçadores 3309 e um outro ao GEs 206 que também seguia naquela força de intervenção.
O ferido grave da C.CAÇ. 3309 era o 1º Cabo Atirador Serrinha (1) e do GEs era o Soldado Pedro Mireco (2) (também da C.CAÇ. 3309 mas destacado naquele Grupo Especial).
Durante a confusão do tiroteio e enquanto socorriam os feridos mais graves, o Serrinha, que nem se apercebera que também tinha sido ferido com alguma gravidade numa perna, atingido por um tiro e pelos estilhaços da granada que matara o Soldado Paraquedista (dado que circulavam lado a lado no momento da emboscada), deambulava pela mata gritando desesperado, descontrolado emocionalmente, disparando em todos as direcções, até que alguém o chamou a si, alertando-o de que a emboscada já tinha terminado e tinha sido decretado o cessar fogo para avaliar a situação.
Só depois da situação controlada é que o Serrinha se deu conta das dores horríveis que se apoderaram dele, que o seu caminhar era agonizante e que o seu pé chapinhava no sangue que entretanto se introduzira na bota.
Evacuado para o Hospital de Mueda para ser assistido aos ferimentos resultantes daquela emboscada, o Serrinha ainda teve que ser assistido na secção de Psiquiatria na cidade de Nampula, dado o seu estado emocional necessitar de alguns cuidados, vivendo momentos horríveis quando se lembrava daquele inferno vivido no dia 14 de Julho de 1971 (...)
Carlos Vardasca
14 de Julho de 2008

Foto 1: Momento da evacuação numa clareira próximo do local da emboscada do 1º Cabo Serrinha da C.CAÇ. 3309 ferido gravemente na emboscada.
Foto 2: O Serrinha na secção de Psiquiatria do Hospital de Nampula, na companhia do Gonçalves também da C.CAÇ. 3309 que ali se encontrava em tratamento.

(1) 1º Cabo Atirador NM 13382970 da C.CAÇ. 3309, António Natálio Sequeira Serrinha.

(2) Soldado Atirador NM 70584870 Pedro Mireco do Grupo de Integração nº 55 da C.CAÇ. 3309 mas destacado para os GEs 206.